Na quinta-feira (15), o The Guardian publicou em uma reportagem trechos de documentos alegando que o governo do presidente russo, Vladimir Putin, estava trabalhando em um plano para apoiar Donald Trump nas eleições de 2016.
Segundo o artigo, "Putin autorizou pessoalmente uma operação secreta de agência de espionagem para apoiar Donald Trump na eleição presidencial dos EUA de 2016 durante uma reunião fechada ocorrida em 22 de janeiro de 2016".
Ainda de acordo com a reportagem, um relatório preparado pelo Departamento de Especialistas de Putin recomendou que Moscou usasse "toda a força possível" para garantir a vitória de Trump.
O Kremlin respondeu afirmando que a ideia criada de que líderes russos se encontraram e concordaram em apoiar Trump em uma reunião foi "uma grande ficção popular" contatada pelo The Guardian.
Para entender melhor sobre a dinâmica de interferências políticas, o porquê do tema das eleições de 2016 nos EUA relacionadas à Rússia sempre vir à tona, entre outras questões, a Sputnik Brasil conversou com Antonio Marcelo Jackson, cientista político e professor do Departamento de Educação e Tecnologias da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Interferência em eleições
O especialista explica que "as relações internacionais nunca foram pautadas pelos bons modos, até existe uma torcida para que isso aconteça, mas geralmente não é assim", e não só em questões ligadas a grandes potenciais, como EUA e Rússia, mas também no âmbito das relações entre países menores.
Como exemplo, Jackson cita a interferência do Brasil na Guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia na década de 1930. Segundo o professor, através da análise de documentos históricos disponíveis, é possível ver a atuação "manipuladora e vencedora" brasileira em um conflito que nada tinha a ver com o Brasil.
"A política, como Nicolau Maquiavel já dizia, ela não é pautada pela ética, e as relações internacionais formam um ramo das relações políticas, então, sim, sempre há uma tentativa de interferência política. Se ela vai ser frutífera ou não, se a estratégia vai dar certo ou não, é outra conversa, […] mas ela acontece sim e não é de hoje", disse o professor.
Sobre as interferências políticas serem proveitosas ou não, Jackson explica que não existe necessariamente um padrão, pois depende do que motiva as ações políticas do Estado.
"O fato de a interferência política ser frutífera ou estéril, tem muito mais a ver com a percepção daquele que quer interferir em relação à política do interferido do que propriamente com a estratégia. […] Se você for aplicar o mesmo tipo de estratégia em diferentes interferências, esquece, você não vai ter sucesso."
Fronteira política
Indagado sobre qual a fronteira, a diferença, entre um líder ter uma preferência política em relação a um candidato em um país estrangeiro e a interferência de fato nas eleições, Jackson elucida que depende das relações econômicas, culturais, de transferência de bens ou de um interesse indireto que resulta em "triangulação".
"Eu posso até ter uma opinião [quanto político] ideológica de foro íntimo 'esse candidato é melhor', entretanto, eu penso 'mas e para os interesses do meu país, o que é melhor?'. Esses interesses podem ser diretos, isto é, compra-se e vende-se diretamente para aquele país, ou indiretos, ou seja, existe um terceiro país, com o qual eu não negocio diretamente, mas que estou interessado, aí forma a triangulação", explicou o professor.
Jackson esclarece que nesse sistema de triangulação, quando necessariamente não há troca direta entre os dois, mas há interesses indiretos, a interferência política pode ser presente porque "se tal candidato ganhar lá, ele vai atrapalhar minha vida nesse terceiro país".
Citando o Brasil, o especialista ressalta que a interferência política pode ser ainda mais forte a partir do momento que não existe um nacionalismo que poderia barrar essa intervenção, pois "somos um país que exporta diversos commodities, mas se começamos a interferir na economia dos EUA, por exemplo, ao produzir muito suco de laranja, esse outro país vai fortemente intervir nas diretrizes brasileiras para mudar esse quadro", e o governo brasileiro não faria grandes ações para impedir essa interferência.
"O brasileiro médio ainda não chegou no capitalismo, a cabeça dele ainda é mercantilista. Na lógica mercantilista o que interessa é ganhar o dinheiro agora, mesmo que eu perca tudo depois" e essa dinâmica ajudaria a abrir as portas para outros países, permitindo uma maior interferência, pois não encontra resistência, afirmou.
O professor também salienta que, ao olharmos para relações políticas e sociais, não podemos observá-las como se fossem blocos, como se tivessem uma forma inteiriça, mas sim pensar como "peças de quebra-cabeças", cada qual com sua imagem, mas que quando se misturam, criam um novo desenho. Assim seriam as relações políticas.
Interferência da Rússia nos EUA
Ao ser questionado do porquê do tema, ligado à interferência da Rússia nas eleições dos EUA em 2016, sempre volta à mídia mesmo com Donald Trump fora do governo e com um documento do Congresso norte-americano apontado que não houve intervenção russa, Jackson responde que, mesmo com todas as controvérsias, Trump conseguiu ter o maior número de votos de toda a história, e assim "merece" ser vigiado mesmo não sendo reeleito.
"Trump é um ator político que não se pode descartar por mais 'tosco' que seja […], pois ele tem um percentual expressivo na sociedade, o mundo fica de olho nesse cara. E aí não é só a Rússia, tem a China também, todo mundo de olho nele."
Sendo assim, a mídia volta ao assunto por conta da sua relevância, ao mesmo tempo que pode ter uma estratégia para "minar a credibilidade da eleição norte-americana de 2016" para tentar atingir esse ator de destaque.
Inimigo externo na política interna
Jackson afirma que se um país quer criar novos mecanismos de comércio internacional, por exemplo, Pequim querendo implantar a Nova Rota da Seda da China (BRI, na sigla em inglês), e todo o comércio está pautado no dólar norte-americano, sente-se a necessidade de criar uma nova moeda.
Se o governo dos EUA está muito bem estruturado, a criação dessa nova moeda terá uma forte reação norte-americana, a qual é respondida "por sanções, sanções contra Rússia, China" para tentar barrar esse movimento.
Porém, se o caos está instalado na política norte-americana através de interferências, vai diminuir bastante as possibilidades de Washington reagir. Ou seja, se um "inimigo externo" tentar provocar a desordem na política interna de um país, ele está agindo de modo a perseguir seus interesses.
Inimigo russo ou chinês?
Ao ser questionado se o "uso" da Rússia, caracterizada pelos EUA como um dos inimigos externos mais fortes do país, poderia mudar e ser um lugar ocupado pela China, Jackson declara que Pequim "faria de tudo para que a Rússia continuasse também a ser inimiga dos EUA".
"Se você tem um objeto para atingir e você centraliza tudo nesse objeto, as atenções estão todas nele, mas se você pulveriza tudo isso, não se sabe para onde atirar […] e isso vai para política externa. Se tem uma coisa que a China faz muito bem é não agir como tradicionalmente os EUA e a própria Rússia agem, Pequim joga o peso econômico, mas não quer apagar a liderança local", afirmou Jackson.
Matéria no The Guardian
Se o tema da suposta interferência russa nas eleições dos EUA, em 2016, vai voltar a ser pauta, o especialista diz que o assunto retornará quantas vezes for preciso enquanto houver pendências.
"O assunto voltará quantas vezes forem necessárias para desestabilizar a política interna norte-americana e tornar possível um novo arranjo internacional, principalmente em relação à posição da Europa", afirmou Jackson.
Para o professor, "a peça-chave dentro dessa história fundamentalmente são os países europeus […] a Europa vai brincar esse jogo enquanto ela puder. De um lado ela depende da Rússia, por outro lado há uma relação intrínseca com os EUA, mas também, historicamente, sempre houve atritos com Moscou, ao mesmo tempo [os europeus] precisam da Rússia, que cada dia se mostra mais parceira da China".
Portanto, dentro dessa dinâmica, matérias como essas "vão voltar quantas vezes a Europa não se decidir de que lado ela fica".