O que está em jogo no atual contexto geopolítico entre Rússia, Ucrânia e EUA?
17:09, 31 de dezembro 2021
Os três países fazem parte de um dos assuntos mais falados na mídia e na política externa mundial do momento. Em meio a mensagens públicas, estratégias bélicas e encontros virtuais, a pressão para chegar a um denominador comum intensifica. A Sputnik Brasil entrevistou analista para entender o que está em jogo.
SputnikNos últimos meses, Rússia, Estados Unidos e Ucrânia vêm sendo protagonistas na formação de um cenário geopolítico desafiador, no qual de um lado Washington e seus aliados acusam Moscou de enviar tropas para perto da Ucrânia, e do outro, a Rússia insta o Ocidente a parar a expansão da OTAN perto de suas fronteiras.
A escalada de tensões se elabora a passos largos, a ponto do líder russo, Vladimir Putin, e do norte-americano, Joe Biden, se "encontrarem" duas vezes no mesmo mês através de videoconferência e ligação telefônica. No último encontro,
ocorrido ontem (30), os líderes ainda trocaram advertências, mas esfriaram as tensões sobre a Ucrânia.
Hoje (31), Kiev, através do secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia, Aleksei Danilov,
definiu como "ataque informativo" contra o país a campanha mediática em torno de uma suposta guerra.
"Hoje, não vemos um grande perigo nas fronteiras [...] Não vemos nenhuma ameaça aberta de agressão por parte da Federação da Rússia […] Não é de maneira nenhuma necessário impor a lei marcial e [...] assustar a sociedade", observou Danilov.
No entanto, ontem (30), um avião E-8 Joint STARS dos EUA, com várias funções de reconhecimento
conduziu seu segundo voo no Leste da Ucrânia para obter dados de inteligência.
A Sputnik Brasil entrevistou Marcelo Suano, especialista em relações civis-militares, mestre em Pensamento Militar Brasileiro e diretor de projetos do Centro de Estratégia Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI), para entender o contexto geopolítico deste momento, qual o papel da OTAN nesta conjuntura e se as sanções sinalizadas pelos EUA contra Rússia podem surtir efeito.
Primeiramente, Suano ressalta que, antes de tentarmos elaborar uma análise sobre qualquer contexto geopolítico, é importante entendermos como os atores daquela circunstância se portam de maneira individual.
Em sua interpretação, os Estados Unidos assumem sempre a postura do "jogador de poker", uma vez que, por serem uma potência, "sabem que são os mais poderosos, e sempre avançam declarando medidas que eles vão tomar caso o outro não se porte da maneira que eles desejam, ou seja, é uma aposta quase como um blefe".
"Essa dinâmica acontece independente do partido que esteja sentando na cadeira da presidência, a diferença é que o republicano ele é pontual e vai direto naquilo que lhe é essencial agindo unilateralmente [...] os democratas tendem a agir multilateralmente, mas colocando todos a reboque dos seus interesses", elucida o especialista.
Já a Rússia, segundo o analista, não está enquadrada dentro das grandes seis principais potências, mas é um país de
grande relevância no setor econômico, bélico e geopolítico, e por ter essa noção, assume "a postura do enxadrista".
"O enxadrista sempre movimenta uma peça forçando o seu adversário a se mexer em relação à peça que ele movimentou, e fica calculando ou imaginando outros contramovimentos até chegar em um ponto no qual ele cria uma árvore de possíveis jogadas e contrajogadas."
A essência da competência do enxadrista está em "realizar movimentos conduzindo seu adversário para ações que lhe interessam", e o contexto entre Rússia, Ocidente e Ucrânia, de acordo com Suano, se apresenta esse aspecto.
"O movimento de tropas russas que [supostamente] foi feito, faz parte de exercícios militares nas fronteiras que são comuns […] e independente do Ocidente achar que não há perigo, é perigoso sim para segurança nacional ter avanço de tropas da OTAN em direção à fronteira com a Rússia, e pela minha perspectiva, é até algo irresponsável, porque não podemos colocar adversários militares fazendo fronteira quente, imediata uns com os outros, é preciso uma cortina", analisa Suano.
Para o especialista, a pressão ocidental exercida através da OTAN "vai forçar o governo russo a tomar decisões, e dentro dessas decisões, se necessário for, ele vai para o ato final, até porque Moscou não tem como princípio recuar demonstrando fraqueza".
"Esse é um erro que o Ocidente comete: deslocar a
OTAN cada vez mais para fronteira com a Rússia […] e com a Ucrânia, eles querem fazer com que Kiev ingresse neste sistema, o qual vai trazer muito problema para a estabilidade da região", pondera.
Ao mesmo tempo,
os EUA e seus aliados vêm acusando Moscou de reunir soldados perto da fronteira ucraniana. No passado dia 24 de dezembro, após manobras, a Rússia anunciou a retirada de suas tropas da região.
Suano esclarece que o que aconteceu foi a retirada de dez mil soldados que estavam em exercício há um mês no território, mas as tropas que já estavam lá há muito mais tempo, permaneceram.
"Essa pequena retirada pode significar um movimento de peças da Rússia para dizer: 'Tudo bem, vocês estão querendo conversar, então vamos conversar. Vamos retirar aqui dez mil soldados e mandar para as unidades de origem'. Isso me parece um ato estratégico e não uma retirada, até porque Moscou não tem motivo para retirar as tropas, elas estão dentro de território russo […] e está dentro da lógica de possíveis embates, na qual um país tem que estar preparado para uma possível invasão", afirma o especialista.
7 de dezembro 2021, 14:28
"A criação da atual tensão nas fronteiras não é uma composição russa, Moscou é um componente importante para elaboração desta tensão, mas isso foi se desenvolvendo desde a separação da Ucrânia da União Soviética e a forma como Kiev vem se relacionando tanto com europeus quanto com russos", complementa.
Sanções são uma aposta arriscada
No início de dezembro, foi ventilado que Washington estava planejando um amplo conjunto de sanções contra a Rússia com o objetivo de impedir uma eventual invasão da Ucrânia.
Dentre as medidas, estaria a aplicação de ações diretas contra membros do Kremlin próximos ao presidente Putin e a produtores de energia russos, além da desconexão do país do sistema de pagamento internacional usado por bancos ao redor do mundo, o SWIFT,
conforme noticiado.
Na época, Putin respondeu à provocação norte-americana dizendo que sob o pretexto de manter a segurança nacional dos EUA e de aliados, o verdadeiro intuito de Washington "é retardar o desenvolvimento russo".
8 de dezembro 2021, 14:52
Segundo Suano, essa estratégia do governo Biden através da condução de sanções "é uma aposta muito arriscada", visto que "
jogará os russos 'no colo' da China", ao mesmo tempo, relembra que outras sanções aplicadas no passado "não surtiram efeitos porque Moscou encontrou alternativas".
"O russo tem uma especialização que o coloca no topo do mundo, que é a capacidade de sobrevivência. […] Na época destas sanções, a Rússia conseguiu encontrar outras alternativas: aumentou as reservas de ouro, conseguiu pagar as dívidas, arranjou novas alianças, fez investimentos em tecnologias militares, se aproximou de Pequim […] ter aplicado essas sanções na época foi outro erro."
Para o especialista, "muito dificilmente as instituições financeiras, que tenham a preocupação de ganhar dinheiro, vão isolar um país que possui a quantidade de gás que tem para fornecer, que tem petróleo, enorme área cultivável, malhas ferroviárias entre as maiores do mundo, além de ser um mercado consumidor interessante.
"É muito difícil que ameaças como essas, no âmbito das sanções diretas, aconteçam. Mas caso se concretizem, os russos já estão desenvolvendo, pelo o menos há três anos, uma alternativa a esse sistema [SWIFT]. Até porque há algo que o mundo precisa acordar: o sistema de criptoativos vai dominar os cenários do século XXI, e o governo de Moscou já anunciou que, se necessário, vai começar a trabalhar com moedas virtuais."
Por trás dos embargos ao Nord Stream 2
Sobre todos os contratempos envolvendo o gasoduto Nord Stream 2 (Corrente do Norte 2), Suano afirma que a leitura feita pelo Ocidente é de que ele não era necessário, e sim "seria uma jogada do governo russo […] para evitar que o fornecimento de gás passe pela Polônia e pela Ucrânia".
Outro ponto que se levanta, segundo o analista, é que o Nord Stream 2, ao contrário do primeiro,
só tem investimentos da Gazprom, "o que não é verdade, pois 10% tem grandes investidores da Europa Ocidental".
"É importante o fornecimento de gás para Alemanha pela segunda rota. Houve o problema do licenciamento, depois houve o problema da autorização, há quem diga que não há ganhos econômicos, mas tudo isso está dentro do debate para tentar convencer a Rússia a manter o fornecimento de acordo com o que os europeus querem, ceder em relação à Ucrânia e aceitar o avanço da OTAN."
Suano sublinha que a Rússia não vai aceitar isso, "e não é porque o russo é 'mal', é porque ninguém faria. Um presidente que aceitasse isso, qualquer um no mundo, seria o pior presidente de todos, ele estaria entregando seu povo a mercê do estrangeiro".
Alerta para qualquer movimento 'inadequado' dos EUA
Na terça-feira (28), o diretor do Departamento de Cooperação Econômica da chancelaria russa, Dmitry Birichevsky, disse que "Washington está usando ativamente ferramentas legislativas e introduzindo novos pacotes de restrições unilaterais ilegítimas contrárias ao direito internacional e aos princípios do comércio livre", e sendo assim, "é preciso estar preparado para qualquer tipo de comportamento inadequado".
Suano valida a afirmação de Birichevsky uma vez que ele responde pelo ponto de vista dos
formuladores da política externa russa que dizem "nós estamos preocupados com a defesa, eles estão nos tencionando […]".
"Faz sentido sim, até mesmo por causa dessa desconexão entre as autoridades ocidentais que não estão corretamente articuladas. Além disso, continuam [os EUA e aliados] interpretando inadequadamente qual é o papel do Ocidente em relação à Rússia, eles ainda não equacionaram como incorporar Moscou em um sistema ocidental."
Adicionalmente, o especialista afirma que a declaração do diretor russo é legítima "não porque os EUA são o mal do mundo, mas apenas porque algumas lideranças norte-americanas estão raciocinando de uma forma que culmina em uma contenção da Rússia".
28 de dezembro 2021, 09:30
No atual momento,
Suano informa que os três países, Rússia, Ucrânia e EUA estão trabalhando em projetos de vigilância e monitoramento em suas fronteiras, e que esses movimentos não precisam ser interpretados como provocações, mas sim como ações para "garantir uma política de segurança".
"No entanto, esse investimento em segurança evidencia
a falta de confiança entre as partes, e essas partes insistem em tencionar cada vez mais os relacionamentos. Se você tenciona o relacionamento, você precisa cada vez mais investir em segurança."
Para que serve a OTAN?
Suano relembra que a OTAN foi criada no final da década de 1940 – para ser operacionalizada no final da década de 1950 – visando conter a expansão da União Soviética para as regiões anfíbias, que seriam as penínsulas da Europa, da Índia, China e Oriente Médio.
"No entanto, quando a União Soviética acabou, ficou a pergunta: 'Para que serve a OTAN'? E a OTAN fica em busca de uma destinação, um objetivo. […] Na minha visão, a OTAN poderia sim ser uma aliança para confrontar os inimigos da paz, e não um ou outro país em particular. E nesse sentido, deveria ter feito o que foi pedido pela Rússia, já que Moscou pediu para participar da aliança."
O especialista salienta que "no mundo atual, não se sabe para que serve a Organização do Tratado do Atlântico Norte, e tenta se resgatar que a OTAN seja ainda um instrumento de combate contra o poder terrestre materializado na Federação da Rússia".
"A
lógica das relações internacionais hoje vai muito além de questões econômicas, militares e políticas. Existe a cultural, tecnológica, jurídica e tentar colocar a OTAN ainda como instrumento de defesa do Ocidente é um erro, ou pelo menos, uma má interpretação do que a organização deveria ser", argumenta.
Reação 'suave' como demonstração de 'fraqueza'
No começo da semana, o futuro presidente da Conferência de Segurança de Munique, Christoph Heusgen,
declarou que o Ocidente deve tomar uma posição mais "direta e dura" contra Rússia, pois reações "suaves" podem ser interpretadas como "fraqueza".
Suano considera a afirmação de Heusgen equivocada, já que segue de forma oposta à proposta da conferência que é a do diálogo: "Ali, é um espaço de diálogo entre autoridades para pensar questões que envolvam o país e guerras, mas principalmente para elaborar caminhos ao distensionamento, e não aumentar a tensão".
"O que mais me deixa um tanto quanto apreensivo é que se [Heusgen] está querendo mostrar força para que os russos não entendam que uma postura de diálogo significa fraqueza, me parece que, com os russos, o mais adequado não é tentar mostrar somente força, é preciso mostrar caminhos que possam ser seguidos conjuntamente."
"Quando se fala que a Rússia está movimentando tropas agora, e vemos que os movimentos de tropa se dão na fronteira com a Ucrânia, na fronteira que fica no ponto de partida com a Polônia em Belarus, na verdade, aquela região toda, Moscou dedica tropas a estes locais há muito tempo. Os russos estão sempre preparados para qualquer ação que venha por territórios de inimigos, e não de territórios de antagonistas ou opositores apenas", complementa o especialista.