Panorama internacional

Burkina Faso: golpe na democracia seria sintoma do extremismo islâmico terrorista na região?

A Sputnik Brasil conversou com os professores Jonuel Gonçalves e Guilherme Dias para compreender melhor como o país da África Ocidental sofreu um golpe militar alimentado por forte onda de insegurança envolvendo grupos extremistas islâmicos, em processo muito parecido com o que houve no Mali.
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Na última segunda-feira (24), a televisão nacional em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, anunciou a formalização do golpe militar no país. O movimento que levou cerca de dez horas, suspendeu a Constituição e levou preso o presidente Roch Marc Christian Kaboré, colocando em seu lugar o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba.
A ex-colônia francesa tornou-se independente em 1960, mas apenas em 1984 assumiu seu nome atual, que na língua africana more significa "terra das pessoas íntegras".
Membro das principais organizações internacionais do continente africano como União Africana (UA) e Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a integridade das terras burquinenses parece ter sido perturbada mais uma vez, agora pela ameaça representada por grupos terroristas islamistas que já fizeram mais de 2.000 vítimas ao longo dos últimos seis anos em Burkina Faso.
Para compreender melhor a situação que se apresenta no país e por que o golpe teve apoio popular em um país com histórico sentimento democrático, a Sputnik Brasil conversou com o professor e pesquisador em Relações Econômicas Internacionais, especialista em África e América do Sul do Núcleo de Estudos Estratégicos Avançado (NEA) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jonuel Goncalves e com o professor de relações internacionais na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), especializado em países da África e Timor Leste, Guilherme Dias.
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Burkina Faso e a ruptura democrática

Em período recente, em 2015, o país da África Ocidental também enfrentou uma tentativa de golpe institucional, sem sucesso.
Na ocasião, um grupamento de elite militar se rebelou e tentou derrubar o governo vigente, o que gerou uma onda de instabilidade de curta duração no pais.
Por cerca de uma semana foram registrados atos de violência e repressão sem apoio popular ou sustentação de outras Forças. O que havia, naquele momento, era uma grande demanda dos burquinenses por um processo eleitoral claro, que manifestasse a vontade de seu povo, que havia derrubado um regime autoritário meses antes.
"O golpe de 2015 fracassou, mas o que vimos em 2022 foi o sucesso da derrubada do governo. Apesar de alguns atores envolvidos serem semelhantes, são fenômenos de origens distintas", explica o professor Guilherme Dias.
Hoje, contando com envolvimento de praticamente todos os setores das Forças Armadas burquinenses, a instabilidade política que assola o país também tem sido observada na região da África Ocidental como um todo e está intimamente ligada à crise de segurança que a região enfrenta com o deslocamento de forças terroristas do Daesh e do Estado Islâmico (organizações terroristas proibidas na Rússia e em vários outros países).

Para o professor Jonuel Golçalves "é bom lembrar que alguns dos autores do golpe atual estiveram contra o golpe de 2015, porém, o que acontece hoje é que o Exército está descontente com a falta de recursos, e a população com a ausência de uma política de segurança que consiga proteger a população, largamente desprotegida sobretudo em regiões de fronteira," afirmou o professor.

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Perigo islamista na África

Os jihadistas (termo cunhado em 1990 para distinguir entre mulçumanos sunitas violentos e não violentos) têm atacado dentro do país e suas forças vem principalmente de dentro do Mali, país fronteiriço, com regiões muito vulneráveis, isoladas e com difícil atuação do Estado.
Devido à onda de violência, mais de 1,6 milhão de pessoas já se deslocou dessa região acentuando a situação de pobreza. Para o Jonuel o terrorismo islamista já deve ter criado raízes no Burkina Faso.

"O Estado Islâmico e a Al Qaeda do Magreb islâmico parecem ser as forças principais que fazem os ataques e é provável que já tenham algumas células dentro do próprio país", afirmou o professor. Segundo ele "a situação que se criou é de autêntico alarme e muita crítica feita na capital é sobre a paralisação do governo e sua falta de capacidade para definir uma política de segurança nacional."

Apesar de Burkina Faso não ser um país de grande expressão política, para o professor Guilherme, toda a crise envolvendo os terroristas islamistas pode ser um sinal de que os países africanos estão trabalhando em uma maneira própria para lidar com a questão.

"O que vemos é uma tentativa de um movimento político na região para resguardar, de alguma forma, a capacidade de manutenção mínima de um aparato democrático e de funcionamento das instituições políticas, um fortalecimento de sua relevância, uma tentativa de lidar com essa questão em Burkina Faso, um sinal para toda a região, para o continente africano e para os parceiros internacionais", disse.

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Comunidade internacional

Enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) se manifesta contra o golpe em Burkina Faso, lamentando o golpe e apontando seu risco para a democracia, nenhuma outra postura prática foi assumida no sentido da resolução do problema.
"O primeiro ministro de Burkina Faso foi funcionário da ONU, aliás, muitos membros de governos africanos passaram por agencias internacionais", disse Jonuel. Ele assinalou ainda que "o primeiro ministro tinha sido nomeado há muito pouco tempo, precisamente, para responder a essas reivindicações de melhores condições de segurança e inclusive melhoria da qualidade de vida da população que corre o risco de ser atraída para a mobilização pelos grupos jihadistas em função da miséria."
É possível que pela pequena expressão comercial e política do país, medidas menos pragmáticas sejam tomadas pela comunidade internacional para o apoio à solução do problema.
O presidente francês Emmanuel Macron, cuja relação com o país é meramente simbólica, já que as exportações de Burkina Faso para a França correspondem a menos de 1% do total e, no fluxo contrário, apenas 7%, já se manifestou em conjunto com os demais parceiros do país pedindo o reestabelecimento da ordem democrática e a soltura do presidente Roch Marc Christian Kaboré.
Guilherme Dias ressalta que um caminho mais viável para a resolução do problema pode estar sendo desenhado de forma interna, entre os membros da UA.
"Um caminho mais viável pode ser o envolvimento das organizações regionais e sub-regionais, na UA e na CEDEAO, e aí o papel da França, por exemplo, seria o de dar o respaldo político, talvez algum tipo de apoio econômico a essas iniciativas para verificar a possibilidade de sucesso", afirmou ele.
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Possíveis desdobramentos

O governo instituído não deu garantias de que fará esforços para o restabelecimento da democracia, ao contrário, ainda não anunciou o fim de sua "intervenção". O que não apenas significa um risco para Burkina Faso, mas para os países africanos.

"A gente já sabe que na África, os golpes de Estado, quando conseguem se manter, têm efeito de contágio e neste momento temos cinco regimes militares relativamente recentes no Sudão, Chade, República da Guiné, Mali e agora o Burkina Faso", disse o professor Jonuel.

Apesar de toda a tradição de luta democrática do Burkina Faso, o especialista ressalta que pode ser que os militares no poder sigam o exemplo do Mali.
"Não é impossível que os militares do Burkina Faso sigam por exemplo do que está sendo adotado no Mali, onde os militares tomaram o poder de forma absoluta e querem ficar no poder durante cinco anos. Por outro lado a sociedade civil se organiza ao entorno de algumas ONGs nacionais muito importantes e que tem tido uma ação realmente muito intensa", afirma o professor.
Para Guilherme, os organismos africanos já têm dado respostas sobre o caso.
"A CEDEAO já decidiu pela suspensão do país, o que não é um fenômeno novo, tivemos suspensões nos golpes no Mali, na Guiné, o que nós podemos ter posteriormente são as sanções econômicas, sanções políticas, mas a suspensão da organização sub-regional já é uma sinalização bastante forte de que não haverá tolerância nem tratamento distinto entre os membros em casos de atentado contra a democracia", completou.
A questão que paira é como os países africanos pretendem lidar com as ameaças de grupos terroristas na região.

Segundo Guilherme, "há portanto uma perspectiva de 'soluções africanas para problemas africanos'. Existe introjetado na população burquinense um valor democrático sem vínculos governamentais que certamente vai pressionar o atual governo para a restauração da democracia."

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