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'Comam tapioca': alta no preço do pão no Brasil deve continuar mesmo sem conflito na Ucrânia

A crise na Ucrânia escancarou a dependência do Brasil de trigo importado. Até quando o brasileiro dependerá do mercado internacional para garantir seu pão na chapa?
Sputnik
Nesta quarta-feira (16), o economista-chefe da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), Maximo Torero, disse que a segurança alimentar mundial está sob forte pressão em função do conflito na Ucrânia.
De acordo com ele, o aumento no preço dos alimentos deve ser sentido principalmente nos países mais vulneráveis.
Rússia e Ucrânia respondem juntos por cerca de 30% da produção mundial de trigo. O preço desse bem essencial fechou o mês de fevereiro com alta acumulada de 22%. Em março, os preços já se elevaram em 15,2%, atingindo níveis recordes.
Os efeitos deste aumento já são sentidos no Brasil. O pão francês está sendo vendido a até R$ 20 o quilo no Rio de Janeiro. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria, o pão francês deve subir entre 10% e 20% nas principais capitais brasileiras.

"O pão tem valor simbólico", disse Nilson de Paula, professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná e membro da coordenação executiva da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), à Sputnik Brasil. "Definitivamente, o processo inflacionário dos alimentos será um elemento forte para as eleições [presidenciais] de 2022, porque atingimos níveis que não víamos há muito tempo."

Segundo ele, o aumento dos preços é anterior à crise no Leste Europeu: "O conflito só colocou água no moinho da inflação".
Nesta segunda-feira (14), a Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimapi) disse que o consumidor deve se preparar para aumentos no preço de produtos como massas, bolos e biscoitos.
Padaria na cidade de São Paulo, Brasil (foto de arquivo)
"Haverá reajustes de preços nas próximas semanas, mas com o horizonte indefinido. O consumidor brasileiro deve começar a sentir os efeitos em breve", alertou a entidade em nota.

Mercado mundial

A Rússia é o maior exportador de trigo do mundo e segue liberando cargas para alguns mercados, apesar da imposição de restrições às exportações para países considerados hostis.
As sanções econômicas e as rotas mais complexas de navegação, no entanto, aumentam o custo do frete e do seguro das embarcações, o que recai no bolso do consumidor final.
Já na Ucrânia, o governo de Kiev interrompeu as exportações de trigo e demais bens alimentícios. O ministro da Agricultura ucraniano, no entanto, garantiu que a safra de trigo deste ano segue intacta.
"A safra de inverno está de fato em boas condições em todo o território do país. E, apesar das dificuldades para o trabalho no campo, a Ucrânia terá pão", disse o ministro ucraniano Taras Dzoba nesta quarta-feira (16), relatou a Reuters.
Outro país relevante para a manutenção dos preços internacionais do trigo são os EUA. Mas, desde o ano passado, a safra de trigo sofre com grave seca na região oeste do país.
Padaria em Franca, São Paulo: o trigo é ingrediente fundamental para a produção do pão
O solo norte-americano ainda não foi capaz de recuperar a umidade necessária, o que pode diminuir a produtividade da produção dos EUA para 2022, informou a CBS.

Impacto no Brasil

O Brasil produz menos da metade do trigo que demanda e recorre à importação para abastecer seu mercado. Compras de países como Rússia e Ucrânia são pequenas, quando comparadas às importações de trigo da Argentina, Canadá e EUA.
O governo do principal fornecedor brasileiro, a Argentina, declarou no dia 3 de março que vai limitar as exportações de trigo e adotar mecanismos de controle dos preços domésticos para evitar uma disparada da inflação, informou a Reuters.
"Os agentes econômicos vão se readaptando e redefinindo suas expectativas", disse Nilson. "E quem ganha com isso são aqueles que têm munição para se defender e controlam os preços."
Agricultor argentino trabalha em campo de trigo em Pergamino, noroeste de Buenos Aires (foto de arquivo)
A Abimapi alertou que o aumento dos preços do trigo começará a ter impacto nos fabricantes brasileiros a partir de abril. Por ora, o país tem estoque de trigo e contratos firmados a preços anteriores à crise.

Não tem pão, comam tapioca

De acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), o consumo de trigo no Brasil mais do que dobrou nos últimos 40 anos, chegando a uma média de 40,62 kg de trigo por ano por habitante.
O alto consumo de massas, bolos e bolachas, no entanto, não era uma característica histórica do país.
"Nas décadas de 60 e 70, com a difusão da chamada Revolução Verde, capitaneada por grandes corporações, o Brasil abandona uma dieta baseada no milho e passa a consumir mais trigo", explica Nilson de Paula. "O trigo não é um produto da cultura alimentar original do brasileiro. Houve uma aculturação intencional."
Representantes das tribos Yawalapiti, Kalapalo e Mehinako tocam flautas uruá enquanto dançam durante ritual fúnebre Kuarup para homenagear a memória do cacique Aritana no Parque Indígena do Xingu
Apesar do alto consumo e da capacidade técnica de órgãos como a Embrapa de desenvolver tecnologias para o campo, o Brasil nunca atingiu a autossuficiência na produção de trigo.
Nilson relata que nas décadas de 70 e 80 o Brasil capitaneava programas de incentivo à produção de trigo através do Banco do Brasil.
"Quando o Brasil passa a fechar acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) nas décadas de 80 e 90, uma das condicionalidades era que abandonássemos programas de subsídios agrícolas. Por isso o financiamento à produção de trigo no Brasil ficou praticamente inexistente."
Para o especialista, poucos países são capazes de desenvolver novas culturas agrícolas sem algum tipo de apoio público.

"A princípio, em nenhum país do mundo a agricultura consegue sobreviver sem apoio do Estado. Os EUA são pioneiros nisso. Eles dizem para os demais [países] não usarem subsídios, mas eles mesmos não submetem a sua agricultura aos sabores do mercado", notou o especialista.

No curto prazo, no entanto, o Brasil não terá como aumentar a sua produção de trigo. O fim do conflito no Leste Europeu tampouco resolveria o problema da alta dos preços de maneira imediata, acredita Nilson.
"Mesmo que tivéssemos o fim do conflito neste momento, teremos consequências de longo prazo em relação ao preço dos alimentos. Teremos um processo de rearranjo da casa", garante o especialista.
Homem olha para monitores com preços das ações na sede da bolsa B3 em São Paulo, 21 de outubro de 2021
O otimismo em relação às negociações de um cessar-fogo na Ucrânia, porém, tiveram reflexo no preço do trigo. Na noite desta quarta-feira (16), o custo do trigo na bolsa de valores de Chicago, nos EUA, caiu mais de 7%.
A queda foi registrada após o líder da delegação de negociadores russa, o assessor presidencial Vladimir Medinsky, dizer que Kiev estaria pronta para adotar o status de Estado desmilitarizado, a exemplo de países como Áustria e Suécia.
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