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Entre pandemia e Ucrânia, o Brasil consegue migrar da dependência externa para a autossuficiência?

Cada qual a seu modo, a pandemia de COVID-19 e o conflito na Ucrânia trouxeram à tona uma miríade de preocupações globais, sobretudo na questão do desabastecimento dos insumos de saúde, de alimentação e de energia. A Sputnik explica como essas preocupações afetam o Brasil.
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Esses dois eventos mundiais e subsequentes, que têm ponto de interseção no momento atual, apontam não apenas para o protagonismo global de Rússia e China — em detrimento dos Estados Unidos — no fornecimento de matérias-primas e commodities, mas também para a busca de uma sonhada autossuficiência. Ela seria possível no Brasil, sobretudo em termos de saúde e alimentação?
A pandemia da COVID-19 e o conflito na Ucrânia evidenciaram que o Brasil não é autossuficiente em termos de insumos nesses dois setores estratégicos. O primeiro é fundamental para a sobrevivência da sociedade em emergências sanitárias, como uma pandemia, e o segundo, além de abastecer o mercado interno, é o principal produto de exportação do país.
A dependência nacional de fertilizantes da Rússia e de ingredientes para fabricação de vacinas oriundos da China, por exemplo, ficou ainda mais evidente diante de ambos os desafios postos no tabuleiro da geopolítica mundial.
Por seu lado, a China é um dos maiores fabricantes do planeta do ingrediente farmacêutico ativo (IFA), matéria-prima fundamental para a elaboração de vacinas e que foi amplamente importada pelo Brasil.
Já Rússia e Ucrânia são os maiores produtores de trigo do mundo. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA), das Nações Unidas, juntos os dois países respondem por 30% das exportações globais de trigo — e 20% das exportações de milho.
Colheita de trigo na região de Krasnodar, Rússia. Foto de arquivo
Para efeito de comparação, o aumento do preço ou a falta de fertilizantes é algo que já vem causando preocupação nos agricultores dos Estados Unidos. Devido às pesadas sanções impostas pelo país, Moscou suspendeu, no mês passado, as exportações russas de fertilizantes aos EUA, que representavam mais de 12% dos US$ 10,3 bilhões (R$ 48,2 bilhões) que a nação norte-americana importou em 2021, segundo dados da ONU compilados pela plataforma Trading Economics.
O Brasil também se mostra altamente dependente dos fertilizantes russos, fundamentais, principalmente, para o vultoso agronegócio brasileiro.
Devido à posição de neutralidade em relação ao conflito na Ucrânia, a Rússia vem garantindo o abastecimento do insumo para o Brasil.
Ainda assim, seria a hora e a vez de o país ir em busca de uma autossuficiência alimentar e de saúde? A Sputnik Brasil conversou com especialistas nos temas na tentativa de compreender a questão.

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Segundo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os países foram oportunistas dentro do contexto da pandemia e do conflito ucraniano — no sentido de se tornarem grandes jogadores no cenário econômico mundial.

"A China aproveitou essa situação para se tornar um grande fornecedor. Basta ver quando começou a pandemia. Praticamente tudo o que precisávamos em termos de saúde vinha da China. Não apenas nós, os brasileiros, mas os franceses também, por exemplo. Os franceses tinham acumulado uma quantidade enorme de máscaras em uma das pandemias dos anos anteriores e as destruíram talvez um ano antes de chegar a COVID-19, porque estavam ocupando muito espaço. Não se calculava que haveria uma necessidade", aponta ele.

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A partir daí, um dos ensinamentos é que tanto na pandemia quanto no conflito na Ucrânia a dependência de fornecedores estrangeiros coloca muitos países em uma situação delicada, na avaliação dele. Isso porque qualquer tipo de restrição pode ser usada como moeda de troca para se alcançar interesses específicos.

"Hoje, a China tem um poder de fogo gigantesco [no quesito da saúde]. No tocante aos fertilizantes, a Rússia também tem. No que se refere aos cereais, a Ucrânia também é um grande fornecedor mundial. Tudo isso demonstra uma conexão excelente em uma situação de paz. Mas, em um momento em que você tem um conflito grande, fica muito difícil. Porque qualquer tipo de restrição pode ser usada como um artifício de negociação: não fornecer alimento, não fornecer medicamento, não fornecer fertilizante", avalia.

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Mas, afinal, uma autossuficiência em saúde e alimentos é possível?

O Brasil, hoje, está entre os cinco maiores produtores de alimentos na escala mundial.
De acordo com Cristina Souza, nutricionista e CEO da consultoria Gouvêa Foodservice, até hoje, nenhum país do planeta conseguiu atingir a autossuficiência em alimentos porque existe uma forte internacionalização do consumo.
Ela exemplifica que existem ingredientes que fazem parte da composição – desde produtos muito simples, como um pão, um chocolate, até produtos mais sofisticados – que exigem a importação de itens internacionais.

"Eu diria que buscar a autossuficiência não faz sentido. O que precisamos buscar são ótimas relações com todos os países. E, à medida do possível, o que a gente puder internalizar e desenvolver sobre produtos ou substitutos internos é muito positivo. Mas, mesmo em itens como confeitaria, por exemplo, é bastante improvável. Isso porque a indústria de alimentos depende de alguns itens produzidos fora do Brasil", observou ela.

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O presidente da SBPC, por sua vez, afirma que há duas maneiras de perceber a questão da autossuficiência: uma é dizer que ela é necessária e importante. A outra, mais realista, é encarar que não é preciso ser autossuficiente em tudo.
Não há clima adequado no Brasil para a produção de trigo, por exemplo. Historicamente, para o país, sempre foi mais vantajoso importar esta commodity e exportar produtos nos quais se destaca – como a soja – do que tentar uma autossuficiência.

"O sonho da autossuficiência, como se dizia outrora, foi um sonho conduzido pelos países fascistas na época da II Guerra Mundial. A globalização pode ter efeitos nocivos, mas se nós conseguirmos manter um clima de paz, se conseguirmos restabelecer a paz, agora tão vulnerável devido ao conflito, essa dependência de insumos externos de qualquer país, seja brasileira ou europeia, deixa de ser um problema", aponta ele.

Na percepção de Ribeiro, um país que deseje ter autonomia precisa investir em setores estratégicos. Porém, é preciso ter um controle deles, que pode ser pela estatização ou de outra forma para não deixar os setores de alimentos e de saúde expostos a qualquer ciclo econômico externo.
Para se chegar em um ponto próximo ao da autossuficiência, é preciso investir em pesquisa científica, diz o ex-ministro.
Um exemplo é o caso que se o Brasil se tornasse produtor de vacinas contra o coronavírus, isso beneficiaria, inclusive, as relações diplomáticas com os demais países e o tornaria um grande jogador no xadrez da política externa.

"Se o Brasil, que é um país muito maior do que Cuba, tivesse realmente se empenhado na produção de vacinas contra a COVID-19, teríamos tido mais sucesso até do que Cuba, que desenvolveu duas ou três vacinas para enfrentar a doença. O Brasil poderia ter a sua vacina. Com isso, poderia ter economizado muito dinheiro em aquisição de vacina no exterior, poderia também ter vendido vacinas ou também as doado, o que fortaleceria nossa política externa – o chamado soft power – angariando simpatia mundial a partir de ações positivas de solidariedade", analisa.

Zé Gotinha, mascote das campanhas brasileiras de vacinação, posa para foto com carregamento de doses de vacinas da farmacêutica Johnson & Johnson contra o SARS-CoV-2, doadas pelos EUA, após chegaram ao Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas, Brasil, 25 de junho de 2021. Foto de arquivo

Há solução? Investimento em infraestrutura e agricultura familiar

Se a autossuficiência é uma utopia, conforme os especialistas apontam, há maneiras de contornar os gargalos criados pela pandemia da COVID-19 e pelo conflito ucraniano.
Enquanto o agronegócio visa o fornecimento ao mercado externo, a agricultura familiar abastece o mercado interno e, portanto, os pequenos produtores, assim como a agroecologia, devem ser mirados – mas não sem olhar com atenção para a infraestrutura de todos esses processos dentro do Brasil.

"Esse equacionamento no mercado interno está ligado ao aumento da nossa eficiência na produção de alimentos e redução de desperdício. Então amplificando não só o agronegócio, que é muito mais profissional, que tem mais investimento de tecnologia, o Brasil é um país que tem uma altíssima dependência da agricultura familiar. Nesse contexto, a agricultura familiar depende ou atua de uma forma menos processual. Durante a cadeia, existe muito desperdício de alimentos. Então é para isso que precisamos pôr foco nesse momento: buscar formas de reduzir esse desperdício, porque ele atinge números assustadores. Existe uma grande concentração desse desperdício no campo. Precisamos de infraestrutura no nosso país para combater isso", indica a CEO da Gouvêa Foodservice.

Ribeiro concorda com ela e enxerga que o conflito da Ucrânia impacta o setor de alimentos duplamente: a questão do fornecimento de fertilizantes e a questão do fornecimento de cereais. Ele acrescenta que o impacto é mundial e não é só no Brasil.
Em sua visão, isso pode fazer a fome "voltar mesmo nos lugares em que ela tinha sido erradicada – não só pelas razões que ela está voltando no Brasil, isto é, por um descaso do atual governo com a questão da fome – como também pela falta mesmo de alimentos". Um estágio extremamente grave, portanto.

"EUA e Rússia são países muito diferentes, mas, no geral, são países que consideram questões essenciais para seus Estados se manterem. Os Estados Unidos têm estoques muito grandes de combustível para qualquer situação que eles necessitem. A Rússia é um grande produtor de petróleo e, embora a Rússia tenha perdido muito da sua indústria (e tenha se tornado mais um país fornecedor de commodities do que de produtos acabados), ela continua sendo um ator importante mundialmente do ponto de vista das energias fósseis", conclui.

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