Panorama internacional

É possível criar um 'euro' para a América Latina chamar de seu?

Uma moeda para chamar de sua. É possível que a América Latina acalente o desejo de criar uma unidade monetária para um bloco de países? Mas, principalmente, há vantagens nesse movimento? A Sputnik Brasil explica se essa proposta é, de fato, viável.
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Da direita à esquerda a ideia já foi ventilada, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo ex-presidente Lula. Por outro lado, cunhar uma moeda que equacionaria o comércio entre potências latino-americanas seria algo vantajoso não apenas para o Brasil, mas para todas as nações envolvidas nessa criação conjunta?
Seria essa nova moeda um ponto de contato com o BRICS, agrupamento composto não só pelo Brasil, mas por Rússia, Índia, China e África do Sul?
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Na percepção de analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, embora ainda não haja uma proposta ou um planejamento concretos no que tange à criação, a resposta para essas perguntas é sim.
Para o cientista político e professor de relações internacionais Bruno Beaklini, a criação da moeda única e regional, sobretudo na América do Sul, é viável. Ela precisa, porém, encontrar respaldo em um plano de política de Estado.
Ele aponta que a possível iniciativa é uma velha bandeira do Mercosul: criar uma moeda aduaneira comum. Mas acrescenta que não será uma iniciativa fácil — embora possível e necessária diante da situação que o planeta vive, no presente, em relação a uma nova bipolaridade geopolítica, esculpida, principalmente, diante da operação militar da Rússia na Ucrânia.
"Pode ser feito um arranjo para que as trocas dentro dos países que façam adesão a essa moeda tenham algum tipo de reserva de valor lastreada — por exemplo, commodities agrícolas, petróleo, etc — e as exportações fora do bloco dessa moeda serem taxadas ou sobretaxadas", sugere o pesquisador.
Países-membros do Mercosul
Como resultado, em sua avaliação, o impacto econômico seria muito bom. Ele exemplifica que seria prático ter alguma prioridade nas trocas entre os países que estão utilizando essa moeda.
Ou, então, um valor diferente para troca dentro do sistema da moeda local, a fim de gerar uma troca interna de valor, enquanto as trocas externas fora desse sistema monetário têm outro.

"Importante seria que tivéssemos um sistema complementar entre as economias dos nossos países. Por exemplo, o trigo argentino, ou a situação absurda de que não tenhamos produção de fertilizantes necessária e suficiente no Brasil. Quase foi feito algo semelhante quando foi feita uma aproximação das grandes petrolíferas, como a [Petróleos de Venezuela S/A] PDVSA, a Petrobras e a YPF [estatal de petróleo da Argentina], YPFB [petrolífera boliviana] e com um banco sendo financiador dessa empreitada de operação. É algo nesse sentido que tem que ser feito, com lastro, em cima de uma indústria de base muito forte, como petróleo, ou qualquer outra que não seja esta. E, a partir daí, ir ampliando o sistema de trocas internas", indica Beaklini.

Com Lula na dianteira das pesquisas de intenção à Presidência da República nas eleições de 2022, é praticamente inevitável não concentrar avaliações dentro de um virtual terceiro mandato do ex-presidente, que governou o país entre 2003 e 2010 e azeitou as relações entre os países-membros do Mercosul.
Entretanto, o fato de Lula ter feito menção a essa questão não significa que vá, na prática, adotá-la.

"Durante seus dois mandatos, Lula nunca deu passos no sentido de uma união monetária real, algo que outrora já havia sido proposto pelo governo boliviano de Evo Morales há mais de dez anos. E Lula nunca abraçou esse projeto", relembra Rafael Rezende, doutor em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Moeda única: uma ponte para o BRICS

O impacto econômico no curto prazo é bem difícil de ser medido, segundo Rezende. Mas há diversas vantagens no longo prazo, e uma delas é a facilitação do comércio tanto entre os países do bloco como países do BRICS. Ou seja, realizar o sonho de driblar, enfim, a dependência do dólar no mercado internacional.
Trata-se, inclusive, de uma tendência global encabeçada pela China, que vem tentando estabelecer o Renminbi como a moeda padrão em uma série de relações comerciais com seus parceiros mais próximos, principalmente os do que se convencionou chamar de a Nova Rota da Seda.
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Já Beaklini acredita que uma nova moeda latino-americana não reduziria a dependência do dólar de imediato. Mas, à medida que se fecham mais contratos em bloco nesta moeda, ou dando preferência para que esta moeda fosse intercambiável com outra moeda — em um sistema de trocas que corresse paralelo ao SWIFT (exemplo é o sistema da Rússia, de 2014, que pode ser complementado com o sistema iraniano e chinês), a redução da dependência do dólar seria possível.
Ele aponta que é importante entender que a moeda não é exógena à economia, e a economia não é exógena ao domínio territorial e ao domínio político. Nesta toada, Beaklini explica que há moeda porque há autoridades que as controlam.
"Há moeda porque há um país, um Estado nacional, e não o contrário. Essa fantasia neoliberal tem que acabar. Acabando essa fantasia neoliberal, e tendo um conjunto de acordos perenes entre países latino-americanos, é possível, sim, diminuir a dependência do dólar. Mas essa redução precisa ter um começo, e o começo tem que ser a prioridade das trocas internas, dentro dessa zona da moeda latino-americana", reflete.
A exemplo de Rezende, Beaklini também sustenta que a nova moeda poderia ser usada, por exemplo, com os países do BRICS, que também vêm buscando alternativas nesse sentido. Isso porque a relação com o BRICS na chamada nova arquitetura financeira mundial é fundamental.
Globo com mapa da América Latina.
O BRICS, por exemplo, tem um fundo de reserva automático e tem o banco do bloco. Para sedimentar a nova moeda dos países da América Latina, ele sugere a retomada do Banco do Sul [banco do Mercosul] como um sistema complementar para facilitar as transações por meio desses dois bancos, além da criação de um fundo de resgate para os países latino-americanos.
Uma situação bastante factível, segundo o acadêmico, é fechar os contratos com projetos financiados pelo Banco do Sul e o banco do BRICS em uma moeda que não seja o dólar, o que seria um avanço, avalia.
"Precisamos montar uma arquitetura financeira latino-americana, e que, a partir daí, seja possível fazer parte do comércio internacional sem depender do dólar ou da tirania cibernética do SWIFT", declara.
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De olho nos entraves

Para ambos os pesquisadores, há muitas dificuldades na possível criação de uma moeda única dos países da América Latina.
A maior delas é a necessidade de se criar um Banco Central em uma região bastante heterogênea do ponto de vista político e econômico, observa o pesquisador da UFRJ. Isso envolve uma série de negociações onde os Estados precisam abrir mão das suas autonomias sobre o próprio sistema econômico, bem como articular os distintos sistemas bancários para, enfim, fazer com que mais de 500 milhões de pessoas façam transações econômicas na mesma moeda.
Se há interesse suficiente e real para que os países deem esse passo enorme, é uma incógnita. "Apesar de aparentemente desejável no longo prazo, envolve muitos Estados governados por campos políticos muitas vezes opostos, e economias bastante distintas. É preciso que a região esteja muito coesa, e que governos e populações vejam vantagens objetivas na adoção de uma moeda única para esse projeto ir para a frente", analisa Rezende.
Para Beaklini, os maiores obstáculos se concentram no nível doméstico, formado por setores econômicos e financeiros que se beneficiam com a dependência do dólar e com o dólar alto no Brasil e na esfera internacional, porque a mesma lógica se aplica aos outros países.
Em última análise, critica ele, há agentes econômicos na América Latina que preferem a dependência e a subordinação. Então a maior dificuldade interna é política.
"Só que essa dificuldade interna vai de encontro a uma dificuldade externa, que é a projeção do poder dos Estados Unidos sobre nós, da América Latina, e as inúmeras capacidades de chantagens, de bloqueios, de sanções — como passam a Venezuela, o Irã, a Rússia, e qualquer país que desafie os EUA na sua pretensão de hegemonia mundial ad infinitum. Há um nível local, doméstico nos países, e há um nível internacional em termos da projeção do poder continental da América do Norte e dos Estados Unidos sobre nós", lembra o cientista político.
Mapa da América Latina (imagem referencial)
Outra restrição também é percebida pelo pesquisador — e ela não se refere a mesquinharias políticas ou jogos de ganância. É preciso acomodar o que resta de setores industriais importantes dos nossos países, de modo que um não faça bloqueio e reserva de mercado sobre o outro. Se a gente for pensar bem, no Mercosul, é preciso ter uma garantia de não ampliar a desindustrialização.

"É preciso evitar a desindustrialização porque ela pode ser um pretexto para se desistir do ingresso em uma nova moeda regional a fim de evitar que o parque fabril brasileiro invada todo o mundo. Então o Brasil tem que ter ciência de que liderar um processo no bloco regional é ser responsável pelos parceiros e não impor suas vontades e condições sobre os demais", analisa.

Se há interesse na formação de uma nova moeda latino-americana ou não, é preciso falar sério de uma política de economia regional com o Brasil liderando. "Não é possível ouvir a toda hora supostos especialistas que não passam de lobistas, ou tutelados por alguém, ou espertalhões do mercado financeiro. Não se pode deixar a economia do nosso país na mão de especuladores e entreguistas", conclui Beaklini.
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