Homeschooling na berlinda: o que há por trás da única e polêmica prioridade de Bolsonaro na educação
Após ser aprovado em regime de urgência na Câmara dos Deputados, o polêmico projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar, também chamado de homeschooling, vai tramitar normalmente no Senado Federal.
SputnikSem pressa, o presidente da Comissão de Educação da Casa, Marcelo Castro (MDB-PI) está organizando seis audiências públicas para debater o tema, com a primeira já agendada para a próxima segunda-feira (27). As demais datas ainda devem ser marcadas pelo relator do projeto, o senador Flávio Arns (Podemos-PR).
É no Senado que o projeto,
o único na área de educação em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) apostou
todas as suas fichas no Congresso Nacional, deve encontrar resistência.
A energia despendida pelo mandatário na questão tem um motivo bem pragmático: uma promessa feita na campanha a fim de agradar os
enclaves cristãos e conservadores, que seguem
apoiando o atual chefe do Executivo.
Mas, afinal, qual o motivo de um assunto
tão colateral, destinado a uma pequena parcela da sociedade, estar em pauta, em detrimento de necessidades mais urgentes — sobretudo em um ano no qual se viram diversas
denúncias de corrupção no Ministério da Educação?
A Sputnik Brasil conversou com especialistas sobre o tema na tentativa de entender quais as implicações da aprovação do projeto de lei do homeschooling no país.
A experiência do homeschooling em sete países da Europa
Há uma série de estudos científicos que investigaram o tema, mas chama atenção um deles,
publicado na revista European Child & Adolescent Psychiatry
em abril deste ano.
Trata-se do primeiro estudo europeu em grande escala que avaliou as percepções de pais e filhos em relação ao ensino domiciliar.
Intitulado "Experiências parentais de homeschooling durante a pandemia de COVID-19: diferenças entre sete países europeus e entre crianças com e sem problemas de saúde mental", o trabalho entrevistou 6.720 pais recrutados por meio de escolas, organizações e mídias sociais sobre o período compreendido entre abril e junho de 2020, quando as instituições educacionais do continente estavam fechadas.
Apenas países ricos da Europa estavam no recorte: Reino Unido, Suécia, Espanha, Bélgica, Holanda, Alemanha e Itália.
O objetivo do estudo era mapear as experiências dos pais com o ensino em casa e suas percepções sobre os efeitos do fechamento das escolas em suas vidas cotidianas — tanto sobre os entrevistados quanto sobre os seus filhos.
Segundo os 21 pesquisadores responsáveis pelo trabalho, "muitos pais relataram efeitos negativos do homeschooling sobre si e sobre seus filhos, e muitos acharam que a educação domiciliar era de baixa qualidade, com apoio insuficiente das escolas. Na maioria dos países, o contato com os professores era limitado, deixando aos pais a responsabilidade primária de administrar a casa. Os pais também relataram níveis aumentados de estresse, preocupação, isolamento social e conflito doméstico".
12 de setembro 2018, 19:15
Em média entre os sete países, as crianças gastavam 50% de seu tempo escolar em autoestudos e cerca de 30% em contato com um dos pais. "Assim, o tempo gasto em contato com um professor ou com os colegas era muito limitado", afirmou a pesquisa.
O tempo de contato com os professores variou entre os países: as percentagens mais baixas foram encontradas na Alemanha e no Reino Unido, nos quais alunos tinham somente 5% do tempo dedicado aos professores. Entre Espanha, Bélgica e Holanda, o tempo de contato variou de 11,83% a 13,93%. Na Itália e na Suécia, os períodos foram maiores: 24,38% e 30,12%, respectivamente.
Se considerados todos os países pesquisados, o percentual de tempo que os alunos passaram estudando com um dos pais chegou a 45,18% em média.
Foi a partir desse universo que os cientistas avaliaram a qualidade das interações no ensino domiciliar.
A proporção dos pais que relataram que "a qualidade do ensino domiciliar do meu filho é muito ruim" foi de 19,2% na média entre os sete países, sendo que a Espanha registrou o maior volume dessa resposta, com 31,3% dos entrevistados.
"Uma proporção relativamente grande de pais (18% a 45%) relatou que o apoio das escolas aos alunos durante o ensino em casa foi insuficiente, sem efeitos de médio porte ao comparar os diferentes países. Em média, 16,7% dos pais relataram que 'é impossível fazer o homeschooling funcionar bem'", informou a pesquisa, apontando que essa percepção ficou mais aguçada entre pais espanhóis (23,7%) e italianos (26,6%).
Os cientistas mensuraram que os pais frequentemente relataram experiências negativas gerais de homeschooling tanto aos filhos (de 17,4% a 27,6% entre os sete países) quanto a eles próprios (de 11,1% a 41,3%). Em muitas nações, a proporção de preocupação e estresse dos pais ultrapassou os 40%.
"Em todos os países, cerca de um terço (33,8%) dos pais sentiram que a educação em casa exige muito das crianças. Alguns pais (11,6%) também relataram que seus filhos não conseguiram participar plenamente do ensino domiciliar. Na maioria dos países, uma grande proporção de pais (na maioria das vezes 50% ou mais) relatou que eles e seus filhos se sentiam mais isolados e que as crianças usavam mídias digitais com mais frequência para coisas além do trabalho escolar. [...] Quanto a aspectos negativos potencialmente mais graves, uma proporção relativamente grande de pais relatou mais conflitos com a criança (11% a 41,3%) e entre adultos (6,8% a 22,5%). Uma proporção menor de pais (em média 5%) também relatou níveis aumentados de uso de álcool e drogas pelos pais", observaram os pesquisadores, acrescentando que o número de pais que usaram substâncias mais vezes foi encontrado em 19,1% das respostas no Reino Unido.
Para os pesquisadores, os resultados obtidos mostram que os pais foram os principais responsáveis pela escolaridade dos filhos no período, o que pode levar a maiores disparidades no progresso educacional.
Além disso, eles concluíram que "crianças de baixo nível socioeconômico podem estar expostas a outros efeitos negativos não investigados no presente estudo".
Lorrayne Stephane Soares, doutoranda e pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que participou do estudo, afirma que o homeschooling produziu "muitos efeitos negativos", principalmente em crianças com algum tipo de transtorno de neurodesenvolvimento.
"A conclusão mais geral a que chegamos é que os aspectos negativos foram muito maiores que os positivos. Isso considerando países europeus, que têm estrutura melhor que o Brasil, onde muitas das escolas não chegaram nem a ter o ensino remoto porque muitas das famílias não tinham Internet, computador ou smartphone disponíveis", ressaltou.
Segundo ela, a maior parte dos pais também criticou a falta de suporte das escolas para implementar o novo modelo e a redução do contato com os professores. A pesquisadora diz que, na visão dos responsáveis, isso provocou um "aumento considerável" do estresse domiciliar e um prejuízo à socialização das crianças.
Ao ser informado sobre os dados da pesquisa, o professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) Salomão Ximenes avaliou que eles trazem um importante questionamento da premissa de que o homeschooling seria hipoteticamente bem conduzido por pais com ensino superior.
"Educação escolar é um processo profissional. O achado sobre os prejuízos causados, considerando tratar-se de uma sobrerrepresentação de famílias mais ricas, como o estudo mesmo assume, demonstra que a pandemia trouxe uma experiência negativa de educação no âmbito doméstico. Esse dado é importante inclusive para questionar o fato de que se ter um nível de escolaridade alto não quer dizer que você é capaz de educar formalmente uma criança. Temos um conjunto de países de alto desenvolvimento que não realiza a promessa que diz que vai realizar", criticou, em entrevista à Sputnik Brasil.
Ximenes ponderou, ainda, que a pesquisa se refere apenas ao período de homeschooling durante a pandemia e que o ensino domiciliar defendido no Congresso Nacional brasileiro propõe uma interação ainda menor da criança com a escola. Ele é um dos especialistas que integram a primeira audiência do ciclo de debates, marcada para o próximo dia 27.
Maioria da população brasileira é contra
Entre defensores e detratores do ensino domiciliar está o povo, que majoritariamente discorda da proposta.
Segundo pesquisa Datafolha coordenada pelas organizações não governamentais Ação Educativa e Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), quase oito em cada dez brasileiros não concordam com o homeschooling.
A pesquisa mostrou ainda que 79,1% dos brasileiros acreditam que a criança tem o direito de frequentar a escola, mesmo que seus pais não desejem isso.
Dentro do universo de 2 mil pessoas consultadas, 95% concordam que frequentar a escola é importante para os pequenos.
Outro dado importante apontado pelas respostas é que 62,5% dos entrevistados discordam totalmente da ideia de que pais têm o direito de tirar seus filhos da escola para educá-los em casa. Outros 16% discordam em parte. Na soma das duas respostas, o total chega a 78,5% de discordância.
Coordenadora institucional da Ação Educativa, que conduziu a pesquisa Datafolha, a educadora Denise Carreira afirmou à Sputnik Brasil que os resultados demonstram que a população brasileira não concorda com as pautas dos movimentos ultraconservadores para a educação.
"Essa pesquisa mostra que a população entende que se trata de uma proposta equivocada e voltada para uma determinada elite. Importante notar que as pessoas entendem que a criança tem direito de ir à escola, direito inclusive estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]. A experiência da pandemia mostrou à população a importância da escola, a importância dos professores. As pessoas reconheceram que há um saber e que não é uma coisa que simplesmente qualquer pessoa possa assumir. A escola saiu mais fortalecida na pandemia", avaliou Carreira.
O lobby pró-homeschooling
A Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), uma das entidades proselitistas do homeschooling, ampliou sua projeção de estudantes nessa condição.
Se antes projetava cerca de 15 mil alunos, em entrevista à Sputnik Brasil, Rick Dias, que preside a instituição, afirmou que há 35 mil famílias adeptas desse método educacional no Brasil, o que corresponderia a 70 mil estudantes em território nacional.
Em um país no qual a evasão escolar é um problema que se arrasta ao longo de décadas, a educação básica, isto é, aquela que compreende crianças e jovens entre 4 e 17 anos, é determinada por lei — passível inclusive de punição de 15 a 30 dias de prisão e multa, conforme o artigo 246 do Código Penal, que versa sobre o abandono intelectual de menores de idade.
A projeção de estudantes em ensino domiciliar feita pela ANED é um contingente minúsculo ante o total de alunos matriculados: segundo o Censo Escolar 2021 do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), são 46.668.401 alunos de 4 a 17 anos matriculados em redes públicas e particulares de ensino. Ou seja, em comparação, os adeptos do homeschooling representam apenas 0,15% do total.
"Esse número que nós projetamos [70 mil] não representa a realidade porque para cada família pode haver mais estudantes. Fizemos pesquisas até 2016, avaliamos crescimento de 55% ao ano e de mais de 2000% entre 2011 e 2018. Nossa projeção é feita com base nos nossos contatos em redes sociais e por e-mail. Muitas pessoas nos procuram. Nossas páginas têm crescimento orgânico. Mas é muito maior do que isso", apostou Dias, cujos filhos foram educados em casa por ele e por sua mulher.
Ele argumenta que o homeschooling permite dar aos filhos uma educação mais personalizada, a fim de desenvolver os dons e a personalidade da criança, algo que, em turmas coletivas, seria impossível, em sua visão.
"A aprovação desse projeto representa um avanço na liberdade educacional. Nossa luta não é contra a escola, mas a favor da escolha. É uma ditadura educacional obrigar a criança a ir à escola. Pais têm direito de escolher", declarou.
Dias também põe em dúvida a pesquisa do Datafolha — "ninguém acredita", afirmou — e diz que a esquerda se comporta como "inimiga" da minoria que defende a educação domiciliar.
Sobre o apoio maciço de Jair Bolsonaro à causa, o presidente da ANED revela que fez uma visita a ele quando o mandatário brasileiro era deputado federal, em um périplo feito pela Câmara dos Deputados 12 anos atrás. À época, ele teria ouvido de Bolsonaro que, caso chegasse ao Planalto, iria apoiar o homeschooling.
"Ele está cumprindo uma promessa de campanha. Nós fomos a ele pedir para cumprir a promessa. Só agora no último ano do mandato estamos conseguindo. Sabemos que um presidente de esquerda jamais apoiaria", indicou.
24 de janeiro 2022, 13:28
Quanto ao fato de a maior parte dos especialistas em educação ser absolutamente crítica ao homeschooling e ao projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, ele minimizou e classificou as opiniões de "falácias, preconceito puro".
"Ser antagonista de uma coisa que você não conhece é ignorância ou má-fé. A socialização da escola é muito ruim. Essas famílias têm a liberdade de ensinar as coisas para seus filhos. Os opositores constroem um discurso baseado em dados que não existem", acreditou.
Outro representante, denominado Classical Conversations, não quis falar com a Sputnik Brasil.
O programa, que nasceu nos Estados Unidos em 1997 como uma forma de negócio e se estabeleceu no Brasil em 2018, diz em seu site que capacitou 65 tutores e formou 20 comunidades no Brasil, compostas por "pais sedentos por um currículo verdadeiramente cristão e que envolvesse a convivência constante entre as famílias".
Diane Ellis, que comanda o think tank educacional cristão no Brasil, disse que só se pronunciaria após o fim da tramitação do projeto de lei do homeschooling no Senado.
Ambas as entidades mantêm lojas virtuais nas quais os adeptos da educação domiciliar podem comprar livros didáticos cristãos, camisetas e outros itens.
Saraivada de críticas
Apesar do avanço da pauta no Legislativo, os especialistas em educação e em políticas públicas consultados pela reportagem são unânimes em rechaçar a proposta.
De acordo com eles, as normas para a educação fundamental são determinadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e mesmo pelo Código Penal, que considera a privação da criança à escola "abandono intelectual".
Pela regulação atual, crianças de 4 a 17 anos são obrigadas a frequentar a escola. Na avaliação dos especialistas, o que o projeto de lei almeja é descaracterizar toda a legislação vigente ao tirar o dever e o compromisso dos pais de encaminharem os filhos para instituições de ensino.
Priscila Cruz, cofundadora e presidente-executiva da ONG Todos Pela Educação, voltada ao aprimoramento da educação básica no Brasil, classifica o texto que tramita no Senado de "absolutamente equivocado" porque não se trata de um tema para ser discutido em um pós-pandemia, sobretudo porque escolas ficaram fechadas por um bom tempo.
"O não assunto acaba ganhando um espaço tão grande em relação aos que importam — como erradicação do analfabetismo. É uma proposta inadequada. A Câmara dos Deputados cometeu crime ao colocar homeschooling em opção à escola. É de um absurdo tão gigantesco que não dá nem para acreditar", indigna-se.
O vício do texto, prossegue ela, é que ele tramita como se regulamentasse casos excepcionais. Porém ele desobriga a matrícula dos filhos em escolas, argumenta.
A Todos Pela Educação é uma das organizações que vão participar do ciclo de debates do Senado na segunda audiência pública das seis sobre o tema.
Cruz aponta ainda que outro problema é a palavra "preceptor".
"Abre-se uma brecha para que seja qualquer pessoa: um abusador, um miliciano, um pastor. A junção desses problemas é uma questão ligada à segurança física e mental da criança. Isso porque a maior parte dos casos de violência domiciliar física e verbal é relatada por professoras e professores. No caso da aprovação dessa proposta, podem existir casos gravíssimos de violência sem contato com o mundo externo privado, porque as crianças não vão à escola. É a integridade física e mental das crianças, nossa inserção em sociedade em relação a elas é protetiva", declara.
Fundadora e diretora pedagógica da Escola Mais, em São Paulo, Marina Castellani pondera que a lei já resguarda a possibilidade de se estudar em casa, caso a criança não possa frequentar a instituição de ensino por algum motivo excepcional.
Ela também explica que a escola é uma das fontes de conhecimento formal mais importantes para a vida toda dos alunos.
"A escola é um espaço decisivo no desenvolvimento pessoal das crianças. É na escola que se dá o desenvolvimento social em campos complexos e sofisticados, a partir de diversidades de contextos familiares, faixas etárias, culturais. A escola é ambiente privilegiado. É ali que o aluno exercita a cidadania todos os dias. Não é um grupinho de amigos. O processo de aprendizagem vem da interação. Sem o contato escolar, a criança pode ser negligenciada no seu processo de desenvolvimento", enumera.
Todos os pesquisadores apontam que ir à escola é um direito universal garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Lembram também que a eventual fiscalização do homeschooling gera um custo adicional para o Estado.
Salomão Ximenes, professor de políticas públicas da UFABC, classifica o projeto de "pior do que o homeschooling", que, por si só, já é ruim, segundo sua avaliação.
"É um reconhecimento legal ou jurisprudencial para alterar bases elementares da legislação brasileira de educação. Ele tem uma redação legislativa bastante ameaçadora ao conjunto do direito à educação. O mais grave é que ele altera o alicerce, a pedra fundamental da educação brasileira, que é a Lei de Diretrizes e Bases. Mais: a fiscalização vai gerar um custo adicional. E quem vai fiscalizar isso? O debate de custos desse projeto de lei foi empurrado para baixo do tapete", critica.