Panorama internacional

Sem Trump, Brasil voltou a valorizar BRICS, mas 'há muito o que melhorar', dizem analistas

A Sputnik Brasil conversou com especialistas em relações internacionais após a XIV Cúpula do BRICS para entender a nova configuração do grupo e o papel do Brasil nele, em meio à crise ucraniana e à ascensão chinesa.
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Na XIV Cúpula do BRICS, China e Rússia "aumentaram o tom: querem fortalecer o grupo como uma alternativa poderosa do ponto de vista econômico, político e financeiro". A análise é do professor de relações internacionais Christopher Mendonça, do Ibmec de Belo Horizonte, em entrevista à Sputnik Brasil.
Segundo o especialista, pode ainda não haver grandes avanços do ponto de vista prático, mas "há um claro endurecimento do discurso revisionista" em termos de intenções.
Durante o evento, que ocorreu nos dias 23 e 24 deste mês, a China propôs um tratado de livre comércio entre os cinco países do BRICS, em uma tentativa de intensificar os laços econômicos do grupo.
Ao fazer a sugestão, o vice-ministro do Comércio chinês, Wang Shouwen, afirmou que Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul têm "enorme potencial de expansão". Segundo ele, o comércio combinado entre os países representa apenas 6% das transações internacionais, "apesar de as principais economias emergentes contribuírem com cerca de um quinto" do volume global.
Em 2021, as exportações intra-BRICS já indicaram esse potencial, com um aumento de 32,6%, em um total de US$ 451 bilhões (R$ 2,7 trilhões), conforme anunciou o governo federal brasileiro. No mesmo período, as exportações do grupo para o mundo cresceram 23,4%, atingindo US$ 4,3 trilhões (R$ 22,6 trilhões).
Já o presidente russo, Vladimir Putin, informou durante a cúpula que o agrupamento está estudando a criação de uma moeda de reserva internacional, em um esforço para desenvolver uma alternativa para acordos internacionais dominados pelo dólar americano.

"As principais conclusões que podemos tirar a partir da reunião é que a preocupação com os rumos da ordem internacional está cada vez mais declarada. Os Estados Unidos estão em uma situação complexa do ponto de vista político e econômico, e a liderança internacional de Joe Biden tem se mostrado cada vez mais debilitada. Nesse sentido, os arranjos políticos alternativos ganham maior espaço", destacou o professor de relações internacionais Christopher Mendonça.

Da esquerda para a direita, os líderes dos países do BRICS: o presidente russo, Vladimir Putin; o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi; o presidente chinês, Xi Jinping; o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa; e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, em videoconferência no dia 9 de setembro de 2021. Foto de arquivo
Ana Elisa Garcia, diretora do think thank BRICS Policy Center — vinculado ao Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) —, afirma que a cúpula "foi um momento muito importante e único de revitalização do BRICS em um sentido geopolítico".
"É um espaço que a Rússia tem para se manter na ordem internacional de maneira multilateral e não isolada e onde a China pôde trazer suas pautas com muito mais força", disse Garcia à Sputnik Brasil.

'Brasil não tem aproveitado espaço no BRICS'

Com relação ao Brasil, as avaliações dos especialistas não foram tão animadoras.
De acordo com Mendonça, nos últimos meses o Brasil passou a olhar com mais atenção para as relações entre os países do BRICS. Ele afirma que embora a China sempre tenha sido um parceiro comercial essencial para o Brasil, no governo do presidente Jair Bolsonaro "houve um atraso da diplomacia comercial brasileira em acompanhar o alinhamento entre os países".
"Já há indícios de melhorias nas relações econômicas, mas há ainda muito o que melhorar. A fala dos representantes chineses na cúpula já demonstra a intenção de ampliar enormemente os investimentos entre os países que compõem o bloco, incluindo a parceria com outras potências médias da América Latina e de outras regiões do mundo", ressaltou o especialista.
Presidente da China, Xi Jinping, em cerimônia no dia 8 de abril de 2022. Foto de arquivo
Mendonça avalia que a política externa de Bolsonaro teve duas fases. Segundo ele, a primeira ocorreu até o fim do mandato do ex-presidente americano Donald Trump, quando houve "um arrefecimento das relações entre os países do BRICS, acentuado pela crise de saúde pública" em meio à pandemia de COVID-19.
"Em 2020 e 2021 houve inclusive alguns momentos de descompasso entre China e Índia por questões territoriais na região da Caxemira e entre o Brasil e a China sobre questões relacionadas ao enfrentamento dos impactos da pandemia", lembrou o professor de relações internacionais.
Em seguida, com o distanciamento do Brasil em relação aos EUA, após a eleição de Joe Biden, Bolsonaro redirecionou os esforços da política externa brasileira ao BRICS, na avaliação do especialista.

"Entre os eventos que evidenciam essa aproximação ressalta-se a visita realizada pelo chefe de Estado brasileiro a Vladimir Putin em Moscou no período anterior ao conflito com a Ucrânia", recordou.

A viagem do presidente brasileiro à Rússia ocorreu entre 15 e 17 de fevereiro. A operação militar especial da Rússia na Ucrânia foi anunciada por Putin na semana seguinte, em 24 de fevereiro.
Há pouco menos de um mês, em 30 de maio, Bolsonaro afirmou que a visita da comitiva a Moscou garantiu a continuidade do abastecimento de fertilizantes russos ao Brasil. Segundo ele, o setor agrícola brasileiro "temia não conseguir fertilizantes suficientes" devido ao movimento já crescente de sanções antirrussas àquela altura.
Jair Bolsonaro (à esquerda), presidente do Brasil, e Vladimir Putin, presidente da Rússia, durante encontro oficial no Kremlin. Rússia, 16 de fevereiro de 2022. Foto de arquivo
Para Ana Garcia, diretora do BRICS Policy Center, o Brasil deveria buscar estabelecer outras cadeias de comércio para além do agronegócio. Segundo ela, o país tem potencial para explorar áreas como tecnologia, pesquisa e desenvolvimento e produtos farmacêuticos, mas, "infelizmente, se colocou na posição mais baixa da cadeia de valor".
"O Brasil não tem aproveitado o espaço no BRICS para ascender na cadeia de valor e promover parcerias de maneira mais estratégica", disse Garcia.
Segundo a especialista, o Brasil tem uma relação de dependência "não mútua" com a China. Ela aponta que o país precisa que o gigante asiático continue importando produtos do agronegócio, ao passo que Pequim vem diversificando parcerias no segmento, inclusive com um aceno à vizinha Argentina, interessada em ingressar no BRICS após convite chinês.
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BRICS e os interesses ocidentais

Garcia afirma que a XIV Cúpula do BRICS ocorreu em um "momento crucial de tensão internacional crescente e de ascensão chinesa". Para além da crise ucraniana, ela lembra que o G7 (composto por Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido) tem tentado se aproximar de Índia e África do Sul para afastar a China e a Rússia.
Já Mendonça indica que o protecionismo dos EUA e da Europa em setores econômicos estratégicos contribui para que os membros do BRICS intensifiquem suas relações, se valendo de "mecanismos multilaterais para ampliar seus mercados".
Segundo o especialista, os países do BRICS, como potências médias, têm características comerciais semelhantes, o que "facilita a sintonia".

"A crise econômica internacional, somada aos desdobramentos da crise no Leste Europeu, tende a colocar ainda mais perto os países que compõem o BRICS, como forma de questionar a liderança dos EUA nesta década do século XXI", afirmou.

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