Panorama internacional

Alemanha e Ucrânia estão divididas sobre história de passado comum, diz NYT

Debates sobre o papel da liderança dos nacionalistas ucranianos no Holocausto demonstram como diferentes visões em relação ao passado afetam as relações dos aliados europeus com Kiev, acredita a colunista do The New York Times, Erika Solomon.
Sputnik
Nas palavras do NYT, é como se o embaixador ucraniano na Alemanha estivesse disputando o cargo do diplomata menos diplomático de todos: determinado a forçar a Alemanha a fornecer todo o apoio possível a seu país, o embaixador Andrei Melnik zombou do chanceler alemão, disse a um ex-deputado alemão do Parlamento Europeu para se calar e postou no Twitter memes, comparando as entregas atrasadas da Alemanha a um caracol com uma bala colada nas costas.
Ao mesmo tempo, diz a edição, não foi o comportamento provocativo que fez Andrei Melnik deixar seu cargo. Em vez disso, tratava-se de uma questão delicada sobre um passado comum.
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Vale a pena lembrar que as autoridades ucranianas tomaram a decisão de demitir Melnik após ele ter dado uma entrevista, em que defendia um líder nacionalista ucraniano Stepan Bandera, que tinha colaborado com os nazistas e os simpatizantes do qual tinham participado de homicídios em massa dos judeus e poloneses.

"Debates sobre os comentários de Melnik suscitaram dúvidas sobre o tema de como os alemães e os ucranianos veem a história comum. O que é ainda mais importante, é o fato de o caso ter demonstrado como visões diferentes em relação à história ainda afetam uma das parcerias mais significativas em meio à operação militar especial russa na Ucrânia", salienta-se na publicação.

Ao enumerar todas as provocações do ex-embaixador ucraniano, o jornal continua com as declarações dele feitas durante o programa alemão no Youtube Jung & Naiv. Ao ter sido perguntado sobre a decisão de colocar flores no túmulo de Stepan Bandera, ultranacionalista ucraniano e líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN, na sigla em ucraniano), Melnik se recusou a reconhecer que Bandera tinha uma orientação antissemita ou fascista.

"Sou contra atribuir toda a culpa pelos crimes [cometidos na Segunda Guerra Mundial] em Bandera", afirmou Melnik. "Não há prova alguma que as tropas dele mataram centenas de judeus", disse, contrariando à opinião da maioria dos historiadores no mundo. "É uma ficção, que os russos têm promovido até hoje em dia, que também encontram apoio na Alemanha, Polônia e em Israel", continuou.

Embaixador ucraniano na Alemanha, Andrei Melnik, durante reunião no Bundestag, Berlim, 27 de fevereiro de 2022
A colunista do The New York Times ressalta que até mesmo os aliados mais leais da Ucrânia ficaram indignados pelos comentários do ex-embaixador. Como exemplo mais notável, são citadas as palavras de um oficial polonês.

"Na Polônia, onde Bandera e seu grupo são conhecidos pelos homicídios em massa de dezenas de milhares de poloneses, o vice-ministro das Relações Exteriores chamou os comentários de 'inaceitáveis'. Além disso, mesmo o presidente polonês Andrzej Duda insistiu, por ocasião da comemoração de um dos massacres na segunda-feira (11), que era preciso 'revelar toda a verdade sobre os homicídios em massa [cometidos durante a Segunda Guerra Mundial] de forma firme e clara", diz o artigo.

Nota-se que na Alemanha, onde o reconhecimento da culpa pelos crimes dos nazistas é considerado um dever nacional, a indignação rapidamente se espalhou pelas redes sociais. "Mesmo os políticos que antes tinham apoiado Melnik se distanciaram."
Ao mesmo tempo, para os próprios ucranianos, ou, mais precisamente, para uma parte considerável dos ucranianos, as opiniões do ex-embaixador parecem razoáveis. Segundo a edição, na Ucrânia contemporânea Bandera, que foi assassinado em Munique pelos agentes soviéticos, é visto como um lutador contra o regime soviético, que teve que assumir compromissos difíceis em prol da independência e liberdade. A colaboração de Bandera com os nazistas é negada, ao se referir ao fato de a Alemanha afinal de contas o ter enviado ao campo de concentração.
Na própria pátria de Stepan Bandera, na Ucrânia Ocidental, há monumentos construídos em sua honra; as ruas são chamadas em nome dele.
Presidente ucraniano Vladimir Zelensky (à direita) e chanceler alemão Olaf Scholz participam de coletiva de imprensa conjunta depois das negociações no Palácio Mariinsky, Kiev, 14 de fevereiro de 2022
Ao mesmo tempo, conforme a colunista Erika Solomon, uma "atenção especial" em relação à figura do ex-embaixador ucraniano na Alemanha explica-se não só pelo seu comportamento provocativo.

"Para muitos, Melnik se tornou uma personificação da dissolução da Ucrânia em Berlim, tanto por causa das entregas de armamento atrasadas, como devido às décadas de manter laços econômicos estreitos com a Rússia, incluindo o tema do gasoduto Nord Stream 2, que os ucranianos consideraram uma tentativa da Rússia de estrangular seu país economicamente", afirma a publicação.

Nos últimos meses, Melnik acusou o presidente alemão e ex-ministro das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, de ter tecido uma "teia de aranha" de contatos com a Rússia. Steinmeier, que anteriormente era bastante próximo do ministro das Relações Exteriores russo Sergei Lavrov, durante um longo período promoveu o Nord Stream 2, pelo que teve que pedir desculpas após o início da operação militar na Ucrânia.
Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier discursa em Berlim, Alemanha
Depois, quando Steinmeier de súbito não foi convidado para fazer a visita a Kiev no início deste ano, o chanceler alemão Olaf Scholz, por sua vez, durante meses recusou a visita. Assim, o ex-embaixador ucraniano chamou Scholz de "salsicha de fígado ofendida" – uma expressão alemã, que em um sentido mais amplo significa alguém que se comporta como prima donna – cantora principal da ópera.
Contudo, agora Andrei Melnik passou a reconhecer que tinha ido longe demais em suas declarações.

"A questão de Bandera é a questão sobre a qual nós, ucranianos, temos de trabalhar muito. É que precisamos de mais tempo", disse, acrescentando que uma história pós-guerra ucraniana, desde a "ocupação soviética" até o conflito de hoje, tem proporcionado poucas oportunidades para o exame crítico da história.

Mas seus comentários, concluiu o The New York Times, refletem a dissolução dos ucranianos na maneira como os alemães os percebem. "É uma posição partilhada por muitos ucranianos, mas poucos têm coragem de a expressar", afirmou Melnik.
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