No fim do mês passado, após negociações intermediadas pela Turquia e pela Organização das Nações Unidas (ONU), Rússia e Ucrânia firmaram um acordo para retomar as exportações de grãos através do mar Negro a partir de três portos ucranianos. O entendimento, embora importante, não deve ser suficiente para resolver a atual crise de grãos, que afeta praticamente todas as regiões do mundo, com preços elevados e vários países restringindo suas exportações.
Diante desse cenário, a fome e a inflação assombram diversos países. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA), da ONU, milhões de pessoas na América Latina estão em situação de extrema insegurança alimentar. No Reino Unido, na Europa, em meio à guerra de sanções contra a Rússia, a inflação deve chegar a 13%, a pior perspectiva para o país desde o último colapso financeiro global, deflagrado nos EUA em 2008.
Na avaliação de Thiago Lima da Silva, professor de relações internacionais da Universidade Federal da Paraíba (Ufpb) e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (Fomeri), da mesma instituição, existem diversas razões para a atual situação de crise alimentar global, e o conflito é apenas mais uma. Ele entende que a questão da fome é anterior ao conflito ucraniano e mesmo à pandemia. Ele explicou que as grandes potências "possuem estoques de alimentos que poderiam ser mobilizados", mas há um contexto global que inviabiliza isso.
Nesse sentido, o professor relembrou que foram oferecidos à Ucrânia bilhões de dólares para armamentos, mas, em contrapartida, alguns milhões de dólares para o combate à fome.
"Não há interesse real em eliminar o problema, e não é de agora. Países desenvolvidos fazem uma espécie de 'gestão da fome', para que ela não torne um problema mais grave do que a fome em si", comentou.
Thiago afirmou que o que poderia ser feito é se "usar bilhões de dólares para estimular o aumento da produção de alimentos em países mais pobres, mas isso não é do interesse dos desenvolvidos porque são grandes exportadores agrícolas e perderiam mercados". Ele explicou que o sistema global de exportação de alimentos criou uma dependência global, "uma construção dos EUA após a Segunda Guerra Mundial". Segundo ele, "isso foi sedimentado para que os países não sejam autossuficientes e dependam do mercado internacional".
"O problema é que, em momentos de crise, alguns países restringem algumas exportações. Os EUA, nos anos 1970, fizeram isso com a soja. No modelo atual, isso é algo indesejável. Mas, na prática, é comum por parte de muitos países. Isso aconteceu nas crises de 2008, de 2011 e de agora, novamente", comentou Thiago Lima.
Em relação ao conflito na Ucrânia e ao acordo para retomar as exportações de grãos através do mar Negro, o professor destaca que a dificuldade maior em torno desse imbróglio se deu por ser um problema, além de comercial, geopolítico.
A avaliação do especialista é que "a crise pode se prolongar", principalmente se a "questão geopolítica envolvendo China e EUA evoluir", situação que deve contribuir para "aumentar os custos dos alimentos em geral". Além disso, explicou, existem outras variantes que pesam sobre o cenário, como a forma de cada país lidar com a inflação. "A Turquia pode deixar de exportar fertilizantes, assim como a Argentina pode deixar de exportar trigo, para controlar a inflação interna", comentou.
Thiago Lima destaca que a questão da fome tem muitos vetores, e os conflitos adicionaram "vetores a um problema que era anterior à pandemia". Ele explica que "como os mercados são interligados, qualquer interrupção na oferta já pode elevar os preços". Outro motivo, em sua opinião, é que os países da América Latina "são os que mais dependem da importação de fertilizantes".
Questionado sobre possíveis soluções ante a crise, o professor defende que as crises globais expuseram a necessidade de se repensar a segurança alimentar dos países e suas conexões com o mercado internacional. Ele citou a Rússia como exemplo, dizendo que Moscou investiu em sua autossuficiência no segmento alimentar, assim como os EUA e a União Europeia. Para ele, a América Latina deveria criar uma estratégia semelhante "e pensar modelos para uma política regional que garanta a soberania alimentar de todos os povos do continente".