Desrespeitando vontade do morto, coração de Dom Pedro I vem ao Brasil com honras de chefe de Estado
O cerimonial de recepção é suntuoso, com salvas de canhão e escolta do regimento Dragões da Independência para ser acondicionado, em seguida, em uma sala especial no Palácio do Itamaraty, em Brasília, onde ficará pelos próximos 20 dias após viajar na aeronave VC-99, da Força Aérea Brasileira (FAB), em um total de custos até então não divulgados.
SputnikForam quatro meses de negociações entre autoridades, com direito a uma comissão especial formada pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro.
Tudo isso para preparar honrarias como se um chefe de Estado estivesse prestes a chegar no Brasil. Poderia ser uma solenidade digna para recepcionar, por exemplo, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ou mesmo o homólogo norte-americano Joe Biden.
A pompa oficial, no entanto, é
para receber o coração de Dom Pedro I (1798-1834), acondicionado há 187 anos em um recipiente de formol
em uma cripta selada a cinco chaves na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, em Porto, segunda maior cidade portuguesa.
Trata-se da primeira viagem do órgão pertencente ao
imperador português que proclamou a Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, e
cujo bicentenário o país comemora neste ano, com o empréstimo da "relíquia" autorizado pela Prefeitura e Câmara de Porto.
Antes de morrer na cidade de Queluz, na região metropolitana de Lisboa, o católico Dom Pedro I expressou um desejo: que seu coração fosse guardado no interior da basílica de Porto.
Assim foi feito e, 187 anos depois, a víscera preservada aterrissa no Brasil nesta segunda-feira (22), por volta das 9h30, para ser exposta até o dia 7 de setembro na sede do Ministério das Relações Exteriores.
O
próprio chefe do Executivo brasileiro Jair Bolsonaro (PL) e membros do alto escalão governamental, como o chanceler Carlos França,
vão capitanear a celebração oficial, marcada para o dia seguinte (23), às 18h, em um evento privado e voltado para autoridades e jornalistas, no qual
o resto mortal será apresentado a embaixadores estrangeiros.
Segundo informações oficiais e preliminares, seria a única parada do órgão até seu retorno a Porto, em 8 de setembro.
A ideia de trazer o coração foi da médica oncologista Nise Yamaguchi, aliada do presidente. Ela teria comentado a questão com o próprio Bolsonaro, que gostou da sugestão.
O trineto de Dom Pedro I, o deputado federal Luiz Phillipe de Orleans e Bragança, teria iniciado as negociações com as autoridades portuguesas. Em suas redes sociais, ele fez apenas uma menção breve à vinda do órgão para o Brasil.
Mas o custo desse aparato faustoso, todo pago com dinheiro dos cofres públicos brasileiros, permanece um enigma guardado a tantas chaves quanto o sarcófago da Igreja de Nossa Senhora da Lapa.
A Sputnik Brasil não conseguiu encontrar detalhes e informações sobre os valores do traslado no Portal da Transparência, tampouco sobre os aparatos necessários para o devido cuidado do coração.
Questionada pela reportagem sobre as cifras investidas na jornada do coração de Dom Pedro I, a Controladoria-Geral da União (CGU) informou que, por ora, não consegue identificar os gastos.
"A CGU não tem como responder às questões apresentadas com base das informações disponibilizadas no Portal da Transparência. Não sabemos qual a classificação das despesas e se há uma ação específica para isso no orçamento. Por se tratar de ação em que o Ministério das Relações Exteriores está à frente das negociações, sugerimos que você entre em contato diretamente com o MRE", disse o órgão.
Já o Ministério das Relações Exteriores foi procurado e não respondeu os questionamentos até o fechamento da reportagem.
'Vai custar caro'
João Cláudio Pitillo, professor de história e pesquisador do Núcleo das Américas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que, para fazer esse transporte e manter o coração de Dom Pedro I por aqui, o Brasil teve que pagar um seguro a fim de garantir a preservação da víscera (e uma indenização no caso de qualquer tipo de avaria).
"O coração fica trancado em uma espécie de cofre com cinco chaves, e uma delas é só o prefeito que tem acesso. Historiadores portugueses são contra trazer o órgão para cá. É quase um amuleto, além do fato de o coração ser um órgão delicado. Como nunca saiu de lá, não se tem ideia de qual será a dinâmica. É preciso um seguro para isso, não divulgaram o valor do seguro, não se tinha ideia de como iria ser feita a avaliação para precificar isso", apontou, acrescentando que os custos sairão "muito caros" para o erário.
O pesquisador indica, ainda, que membros da ordem que cuida do coração também estarão na comitiva que saiu de Portugal rumo ao Brasil.
O próprio presidente da Câmara Municipal do Porto (equivalente à prefeitura da cidade), Rui Moreira, disse que vai acompanhar a víscera na viagem a fim de garantir sua preservação e segurança. O chefe de polícia da cidade portuguesa também foi destacado para fazer a guarda do resto mortal durante a estadia no Brasil.
"Vamos ter que arcar com a despesa de vinda e de hospedagem dessa turma toda. Na verdade, é um simbolismo do atual governo federal, que nada mais é do que uma miríade de interesses privados. Estes são representados por figuras alijadas da máquina pública há muitos anos porque pouco têm a contribuir no cenário brasileiro nos últimos cem anos. Eles se aproveitam da entrada de Bolsonaro e se aliam a ele", criticou Pirillo, citando a família real portuguesa e setores religiosos conservadores, como católicos e evangélicos. "Os 200 anos da Independência serão uma festa nostálgica da era da monarquia brasileira, para reintroduzir figuras que representam muito pouco ou nada para a história brasileira. Inclusive, os militares estavam em total antagonismo com a monarquia. A república do Brasil [declarada posteriormente, em 1889] é um rompimento dessas duas forças."
Ele lembra que, no centenário da Independência (1922, portanto), nenhum tipo de recordação ou lembrança foi realizada, sobretudo devido à repulsa dos militares pelo Brasil monarquista.
O historiador vê o povo brasileiro à margem dessa discussão e diz que o lema "Independência ou Morte" foi uma criação mentirosa conforme o contexto histórico e político da época.
"É difícil manter a coerência de um fato que se constrói que não tenha o povo na jogada", avalioDesrespeitando vontade do morto, coração de Dom Pedro I vem ao Brasil com honra de chefe de Estadou. "Nunca houve grito do Ipiranga e nem rompimento com Portugal. A Independência foi fruto de uma burguesia que não queria mais pagar impostos para a Coroa portuguesa. Inclusive, a Independência custou muito caro ao Brasil, que mergulhou em um processo inflacionário de tremenda recessão porque ficamos praticamente sem moedas de ouro, porque foi tudo pra Portugal. Portugal também sofreu, porque tudo foi para o cofre da família real portuguesa, e não para os cofres públicos", explicou.
A vinda do coração, em sua avaliação, é uma medida estritamente "eleitoreira", já que Bolsonaro concorre à reeleição neste ano.
"É o governo Bolsonaro pagando a esses setores o apoio que tem, sinalizando para eles. Esse ato é meramente eleitoreiro. É apenas para pagar favor a esses setores, principalmente o católico e a casa monárquica brasileira", sinalizou.
Mas, afinal, há termo de comparação com outros tipos de simbologias nacionais mais tradicionais?
Na visão de Pirillo, a resposta é um não muito enfático.
"É atipico, porque ele [o coração de Dom Pedro I] não é tradicional, e nem vai ser. O coração não é um símbolo da Independência porque não foi ofertado ao Brasil. A vinda desse coração ao Brasil contraria, inclusive, o desejo do seu dono. Porque ele disse pra ficar lá e preservar. As pessoas que estão fazendo isso estão desrespeitando, inclusive, o último desejo de um morto", disparou.
Ele lembra que o maior símbolo nacional seria a bandeira do Brasil, mas que as cores — a despeito dos mitos populares — vêm das tonalidades das casas monárquicas que compunham a família real brasileira.
"Somos a única bandeira criada com palavras escritas em uma avassaladora massa analfabeta da época. A bandeira do Brasil se tornou conhecida mundialmente por causa do futebol. É importante como instrumento de unidade naconal, como lembrança do momento de transição da monarquia para a república. Mas quando a gente se preocupa mais com as bandeiras do que com gente com fome, é um problema. O simbolismo é importante, mas não pode se sobressair à realidade da população. Passados 200 anos, o Brasil não teve um grande salto estrutural: a concentração de renda é brutal, as condições da população negra e pobre não melhoraram. Há pouca coisa a se comemorar quando vemos IDH [Índice de Desenvolvimento Humano]", refletiu.
Há, ao menos, um lado positivo, segundo ele: saber que o órgão estava bem preservado. A viagem do coração para o Brasil também trouxe um benefício até então inédito aos cidadãos de Porto: ele ficou exposto no último final de semana para visitantes, antes de embarcar no avião da FAB para cruzar o oceano Atlântico. Segundo a prefeitura de Porto, 3 mil pessoas foram observar o resto mortal.
Por aqui, nem os autodeclarados monarquistas se demonstraram muito animados com a turnê nas redes sociais. Resta, agora, saber se a exposição da víscera terá público cativo para visitá-la no palácio construído por Oscar Niemeyer.
8 de setembro 2021, 15:42