'Lei seca', bronca da mãe em rede nacional, improvisação e Chernobyl: o legado dúbio de Gorbachev
Amado por uns e odiado por outros, Mikhail Gorbachev, que morreu na terça-feira (30), coleciona episódios que marcaram a carreira e a história. Figura tão complexa quanto importante do século XX, tornou-se melancólico ante as idiossincrasias do seu mandato — e o colapso da União Soviética.
SputnikA Sputnik Brasil conversou com o historiador Rodrigo Ianhez,
especialista em história da União Soviética formado pela Universidade Estatal de Moscou, na Rússia, onde vive desde 2011, para
remontar a trajetória da estrela cadente da política soviética.
Ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1990, já na fase final do seu
governo, que durou seis anos, Gorbachev também estrelou algumas propagandas publicitárias para marcas
do Ocidente, pelo qual foi exaltado. Na Rússia, porém,
não é bem assim.
"Até a postura melancólica e solitária de Gorbachev nos últimos anos dá uma pista de que tipo de legado e não é um legado que ele gostaria de ter associado ao seu nome. Já nos últimos anos ele vinha demonstrando arrependimento por causa de algumas das suas políticas e insistindo que nunca tinha sido sua intenção promover a dissolução da União Soviética", aponta Ianhez. "Outro elemento que nos ajuda a compreender esse legado é o fato de que ele é visto de maneira muito diferente no Ocidente e na Rússia no espaço pós-soviético."
Sempre foi um homem muito carismático e, de acordo com o historiador, a característica funcionou nos primeiros anos dentro da União Soviética, mas, quando a Perestroika começou a afetar a economia gravemente e, portanto, afetar a vida das pessoas, a popularidade logo se evaporou.
Já no Ocidente, ao menos até a última década, ele era uma figura bastante popular: dava constantes entrevistas e aparecia em documentários.
Isso diminuiu, porém, a partir do momento em que ele começa a afirmar que se arrependeu de muitas das suas medidas, ou seja, começou a deixar de falar aquilo que interessava à grande mídia ocidental.
"É um momento em que ele cai no ostracismo, digamos assim, algo que na Rússia vem desde muito cedo. Já na década de 1990, o desempenho dele nas eleições foi terrível, já demonstra um descontentamento muito grande da população em relação a ele. De modo que seu legado é um legado dúbio. Gorbachev é tratado como um herói no Ocidente. Ainda que ele dissesse não ter a intenção de dissolver a União Soviética, ele praticamente entregou a Guerra Fria nas mãos do adversário, unilateralmente diminuindo as capacidades militares da União Soviética e abrindo mão da relação que a União Soviética tinha com seus aliados do Leste Europeu. Até hoje, algumas das consequências disso conseguimos observar, sendo o caso mais claro o conflito da Ucrânia, que tem sua raiz, justamente, no âmbito da OTAN e da reunificação alemã", explica.
Por outro lado, o legado dele visto da Rússia e de outros países da antiga União Soviética é um legado de caos social, de desastre econômico.
"Não há análogo na história de um país que não tenha sofrido uma derrota militar (a dissolução da União Soviética não foi pacífica, mas não foi resultado de uma derrota militar) e a consequente queda dos índices econômicos e sociais, a saída de milhões de pessoas do país, até o ponto que a expectativa de vida foi afetada: dos homens diminuiu de dez a quinze anos, desemprego em massa… Um caos social econômico e político que não tem precedentes na história. Esse é o legado que acaba sendo associado a ele", prossegue o especialista.
Mas a catástrofe não se pode atribuir apenas a ele. Segundo Ianhez, o ex-presidente Boris Yeltsin (1931-2007), também, é uma figura que teve uma grande parcela de responsabilidade pelo caos econômico que se seguiu à dissolução da União Soviética.
O discurso dele enveredava pela necessidade de promover as reformas, que seriam inevitáveis para manter o sistema de pé.
"Mas não acho que dá para eximi-lo de culpa. Gorbachev se mostrou uma figura excessivamente ambiciosa, arrogante em determinados aspectos", critica.
Os russos seguem mantendo uma visão bastante negativa acerca de Gorbachev, segundo o professor, que mora em Moscou há 11 anos.
Isso porque eles ainda o vinculam ao caos econômico que foi instaurado no país, que começou a se agravar muito na década de 1990. Seu sucessor, Yeltsin, teve uma dose maior de responsabilidade nisso, mas ambas as figuras seguem associadas ao período.
"Entre os liberais russos, o Yeltsin ainda é, até certo ponto, uma figura admirada, enquanto o Gorbachev é visto como um comunista que perdeu o trem da história", indica. "E entre aqueles que simpatizam com a União Soviética ele é visto como um traidor. Há, inclusive, teorias da conspiração recorrentes no imaginário russo de que ele teria feito isso por interesse pessoal, que ele teria vendido o país por interesses financeiros, teses que não se sustentam no material que nós temos. Mas, de toda a forma, ressoa bastante entre alguns círculos aqui na Rússia."
Tendo feito propagandas para grandes marcas do Ocidente e cobrando cifras altíssimas para dar palestras (e mesmo para ceder entrevistas jornalísticas), Gorbachev acabou colando em si próprio a pecha de alguém ganancioso, que procurou, em primeiro lugar, um benefício pessoal em detrimento de todo um país gigante como foi a URSS.
Improviso, ingenuidade e crítica pública da própria mãe
Um exemplo de como ele lidava com os seus planos, segundo o especialista, é que trabalhava com improvisação e com metas excessivamente ambiciosas, sem planejar de maneira adequada os seus passos, como aconteceu com a grande campanha que ele assumiu contra o alcoolismo, que foi um fracasso desde o início. Ou seja, uma espécie de "lei seca" que vigorou nos anos 1950 nos EUA, só que, dessa vez, à moda russa.
"Era uma campanha grandiosa", narra Ianhez. Preocupado com grandes movimentos populares, ele proibiu a comercialização de qualquer tipo de bebida alcoólica e ele foi alvo de uma tremenda impopularidade logo no começo de sua gestão.
"Até sua mãe, famosamente, vai criticá-lo por ter tomado essa medida e dizer que todo o país estava lhe desejando mal pelas medidas que ele havia tomado. E ele as cancela abruptamente, não pensa nas consequências disso. Em um primeiro momento, as pessoas começam a comprar doces, açúcar para fazer salmagon, que é uma espécie de uma vodka caseira. E ele tenta retirar o açúcar das prateleiras. Claro que um problema vai encadeando em outro, até que ele percebe que é inútil continuar. É um exemplo dessa improvisação desastrada que marcou a própria Perestroika. Neste caso [da Perestroika], com medidas muito maiores, muito mais ousadas. Ele, muitas vezes, era indeciso quanto aos rumos a tomar e, enfim, acabou se demonstrando aquém da tarefa histórica dele."
Engolido pelo monstro que criou
Por mais que Yeltsin fosse aquela pessoa que, de fato, tinha a missão declarada de dar fim à União Soviética, Gorbachev acabou deixando que uma figura como Yeltsin se criasse, afirma Ianhez.
"Ele não pensou nas consequências de aliar uma reforma política a uma reforma econômica em um passo acelerado, em um período curto de tempo, e acabou criando seus próprios monstros. E um deles o engoliria: é o Boris Yeltsin".
Ele foi "precipitado e ingênuo" a partir do momento em que ele se afasta do Partido Comunista e cria um governo da União Soviética à parte do partido, e "acaba não percebendo que há figuras ligadas ao Yeltsin que haviam assumido o governo soviético e que estavam tramando pelo seu fim".
O historiador diz que ele foi ingênuo, também, na ocasião do golpe de agosto, "que até hoje é motivo de discordância entre os historiadores quanto ao fato de se Gorbachev participou ou não, se sabia o que aconteceria e resolveu se colocar como vítima".
"Mas o fato é que ele acabou não percebendo o momento da coisa. Yeltsin capturou melhor: ele se coloca como um herói, se apresenta, está nas ruas fazendo aquela defesa em plena televisão do que seriam valores democráticos enquanto o Gorbachev acaba ficando com a imagem de um líder isolado, sem muitos aliados. A presidência da União Soviética acaba se tornando essa presidência de um Estado que já está em plena dissolução e decadência."
Tragédia de Chernobyl
O especialista destaca também o papel de Gorbachev na crise de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986, demorando muito para anunciar a tragédia nuclear e nunca tendo ido visitar a região.
"Ele minimizou os problemas no início. Tudo bem, ele foi mal informado, mas ele acreditou que seria um evento de menor gravidade. Foi uma atuação bem atrapalhada e esse acontecimento é ligado à figura pessoal de Gorbachev. É ligado ao governo soviético, à URSS, a problemas históricos e anteriores da União Soviética, mas foi uma atuação infeliz a que ele teve, e raramente é lembrada ou criticada no Ocidente", indica.
Gorbachev sempre deu mais atenção ao Ocidente do que ele dava, por exemplo, aos seus aliados do bloco, segundo Ianhez.
"Ele vai adiar muito uma visita a Cuba, ele não lidava bem com a maioria dos líderes do bloco oriental, enquanto fez uma amizade com Margareth Thatcher, com o Bush pai, com o próprio Ronald Reagan, com quem sempre teve uma relação boa. Ele gostava desse papel midiático, dava frequentes entrevistas, saía na rua para ser fotografado junto ao povo. Algo que funcionou por um tempo na União Soviética, mas ele acaba se dedicando mais a viajar para o Ocidente. E, conforme as reformas afetavam a vida dos cidadãos soviéticos e ficava cada vez mais difícil para ele se apresentar como uma figura carismática dentro de casa, ele, a gente pode perceber, vai contando cada vez mais com essa popularidade que ele tem fora da União Soviética, que ele tem no Ocidente. [Isso chega] a um ponto que é visto como sendo ruim dentro da União Soviética. Porque parecia que ele estava apresentando um espetáculo ali para um outro público", conclui o historiador.