Argélia no BRICS? Iniciativa pode levar mais países da África a fazer o mesmo, diz analista
13:23, 16 de setembro 2022
Negar que a geopolítica global está em transformação é desafiar o senso comum e a racionalidade, garantem especialistas à Sputnik Brasil. O mundo assiste aos primeiros passos de uma nova ordem, a partir de novas alianças para reger o futuro das nações. O BRICS está inserido nesse processo? Qual o peso de um possível ingresso da Argélia no grupo?
SputnikMaior produtor de gás natural da África, a Argélia anunciou, em 31 de julho, em declaração do presidente Abdelmadjid Tebboune, a intenção de ingressar no BRICS, entrando na fila com Argentina, Irã, Arábia Saudita, Egito e Turquia. A iniciativa argelina é mais uma sinalização de que, em meio à nova ordem geopolítica multipolar que está nascendo, o momento é de fechar alianças, pois a história tradicionalmente não costuma esperar por atrasados.
Em conversa com a Sputnik, o cientista político argelino Farid Benyahia, especialista em questões geopolíticas, econômicas e energéticas, explicou que a Argélia, ao analisar possíveis aliados, entende a Rússia e a China "como parceiros estratégicos", sobretudo porque a opção de ser constantemente neutra não é mais sustentável no contexto atual. Ele apontou que o governo argelino "observa que há o fim da globalização guiada pelos Estados Unidos [...] [e] que estamos entrando em uma fase de transição".
Para ele, alguns países compreendem que a principal atratividade do BRICS é o importante contexto da desdolarização da economia. "No futuro haverá uma cesta de divisas, moedas, então haverá o rublo e o yuan, com o dólar, é claro", comentou. No centro da discussão, ainda existe a expectativa por mais reformas nas principais instituições internacionais.
8 de setembro 2022, 10:53
Na avaliação de Tito Lívio Barcellos Pereira, especialista em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o possível ingresso da Argélia no BRICS aponta que o agrupamento "está em expansão em direção ao mundo emergente", pois o país é reconhecido como um importante ator no norte da África, "com crescimento econômico constante e uma classe média consumidora".
Além disso, aponta ele, a Argélia, assim como Irã, Argentina e outros países, "são Estados que demandam investimentos em infraestrutura, na indústria, no turismo e no setor agrícola". Ele ainda explicou que a chegada dos argelinos ao BRICS seria um ganho importante para o grupo, pois o país "tem uma das maiores economias do continente africano", com grande influência no Oriente Médio e na bacia do Mediterrâneo.
"Sua chegada agrega um novo olhar, e não apenas para a África, mas principalmente para o sul global", avaliou, em entrevista à Sputnik Brasil.
O que significa a chegada da Argélia para o Brasil?
Atualmente, o BRICS reúne países com economias em desenvolvimento equivalentes a quase
um terço do PIB mundial. Para países como o Brasil, a economia argelina tem muito a acrescentar. No último dia 29, inclusive, senadores
aprovaram o texto do Acordo de Cooperação em Defesa entre Brasil e Argélia, assinado em dezembro de 2018.
O tratado tem ênfase nas áreas de intercâmbio de delegações e de informação, capacitação de pessoal, aquisição de armamentos,
equipamentos militares e sistemas de armas, troca de experiência em matéria de manutenção e apoio logístico de equipamentos comercializados entre as partes. Além disso,
propiciará o convite de observadores militares para manobras e exercícios nacionais e a promoção da cooperação em pesquisa científica, tecnologia e indústria de defesa.
Para Tito Lívio Barcellos Pereira, a aproximação entre os países é fundamental para a retomada da cooperação Sul-Sul, "quando o Brasil procurou estreitar fortes laços econômicos, políticos e diplomáticos com o continente africano". Segundo ele, a África sempre esteve na mira da diplomacia brasileira, e a Argélia, em especial, dado o tamanho de sua economia e população, goza de uma posição estratégica privilegiada.
Eles "podem servir como um polo industrial para os investimentos brasileiros no norte da África e no Mediterrâneo. A agricultura também pode se beneficiar, porque é um país que tem uma área de cultivo limitada. Isso pode trazer um mercado para o setor manufatureiro brasileiro, assim como nos segmentos de metalurgia, autopeças e veículos. São mercados que tendem a se beneficiar dos emergentes", disse.
12 de setembro 2022, 08:00
O especialista ainda aponta que, nesse contexto, paira sobre o imaginário da população "a ideia equivocada de que o Brasil deve canalizar seus mercados para o norte, mas o futuro está nos acordos Sul-Sul". Ele relembrou que, durante a gestão de Celso Amorim no Itamaraty, o Brasil teve uma parceria ocasional com a Argélia para modernizar aeroportos e construir rodovias, e muitas empreiteiras brasileiras estiveram na Argélia e na Líbia (antes da guerra civil).
Ninguém quer perder poder
Diante do possível crescimento do BRICS e das constatações de que o mundo caminha em direção a uma nova organização geopolítica, inspirada em novas potências, atores e alianças, é inevitável a discussão sobre a resistência dos países que atualmente exercem influência sobre a economia global e suas organizações multilaterais. Para Tito Lívio Barcellos Pereira, existe a possibilidade de alguns países, em especial os EUA e seus aliados na União Europeia (UE), tentarem atrapalhar o surgimento de novos blocos de poder.
Conforme relatou o especialista, "a iniciativa do governo argelino pode levar outros países da região a querer fazer o mesmo, e isso pode ser uma decepção para os europeus e americanos". Ele lembrou que recentemente o presidente da França, Emmanuel Macron, esteve em Argel e foi hostilizado.
"Isso significa, de certa forma, que o ressentimento entre europeus e africanos ainda existe. E se a Argélia busca se colocar como um grande ator regional no Norte da África e na bacia do Mediterrâneo, como a segunda potência militar em seu continente, é preciso abrir os olhos para novas parcerias", comentou.
É nesse sentido, principalmente, afirma o especialista, que Rússia e China estão à frente dos EUA na África. Para ele, "os EUA têm um grande desafio em diminuir a distância imposta pelos chineses [na África]. Pequim está presente no continente desde os anos 1990, com investimento estrangeiro pesado, principalmente em obras de infraestrutura e indústria, potencializando a economia dos países africanos, e isso foi uma ferramenta de soft power muito forte para os chineses".
Tito Lívio Barcellos Pereira ainda apontou que "os russos também, ultimamente, aumentaram sua presença no continente e estão investindo pesadamente na África, sobretudo em setores fundamentais para países mais carentes, como energia, centrais nucleares, indústrias de metalurgia e aço. Em julho, em visita ao continente,
o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, defendeu reduzir consistentemente
a proporção do dólar e do euro no comércio mútuo.
Reino Unido e Espanha, além de outros países da Europa, em diversos pronunciamentos nas cimeiras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), se dizem constantemente preocupados com a "ameaça" russa na África. Enquanto isso, vários países da África Central assinaram um acordo, no dia 8, para criar uma rede regional de dutos de petróleo e gás até 2030 para garantir a segurança energética, combater a pobreza energética e impulsionar o fornecimento interno de hidrocarbonetos. O projeto de energia exigirá know-how estrangeiro e terá a participação do conhecimento técnico russo.
13 de setembro 2022, 08:15
A sala de espera...
Diante de uma reorganização da ordem mundial, que durante muitas décadas esteve centrada nos EUA, o BRICS ganha força e se torna um mecanismo bastante importante ao reunir as grandes nações que
não formam o chamado bloco ocidental. Ainda não está claro quais são as chances de que novas cadeiras sejam criadas, seja para Argélia, Argentina ou Irã.
O BRICS é um agrupamento informal, sem sede, estatuto e processo de adesão definido. A entrada de outros países depende basicamente da aprovação dos chefes de Estado.
Entretanto, embora pouco possa ser dito sobre as chances do BRICS crescer, Tito Lívio Barcellos Pereira acredita que "
estamos assistindo a um processo histórico, que definirá o futuro do planeta". Como ele relatou, "o que podemos pontuar é que a
partir do conflito na Ucrânia, a campanha de isolamento dos EUA e seus parceiros na UE ainda precisa encarar os desafios dos países do sul global a
aderir às sanções e romper relações com Moscou. Entretanto isso não está acontecendo".
"Os países querem investimentos russos, e o conflito deflagrou que existem alternativas aos EUA, à UE. Existem políticas de integração regional que podem desenvolver os países sem a necessidade de se aproximar dos EUA e da UE. Isso explica, de certa forma, os sucessos diplomáticos da ofensiva russa", destaca o especialista.
"O embate se dá também em âmbito político e diplomático, além dos confrontos, pois países africanos ainda encontram em Moscou um parceiro com elementos a serem explorados. Esse objetivo de
criar um mundo multipolar, policêntrico, ele já deu certo. Ele é uma realidade. Os tratados, os acordos mostram que
isso é uma realidade. Mas é um inicio, que precisa ser ampliado e tem grande potencial", conclui.