A lei marcial decretada ontem (19) pelo presidente Vladimir Putin em Lugansk, Donetsk, Zaporozhie e Kherson entrou em vigor nesta quinta-feira (20), após ser aprovada também pelo Conselho da Federação (câmara alta do Parlamento russo). O decreto também introduziu regimes de prontidão em regiões próximas: Krasnodar, Belgorod, Bryansk, Voronezh, Kursk e Rostov, assim como Crimeia e Sevastopol.
De acordo com Carolina Bernardes Enham, professora e coordenadora do curso de pós-graduação em projetos internacionais do Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), vice-presidente regional da Câmara Brasil–Rússia de Comércio, Indústria e Turismo no estado e cônsul honorária da Rússia em Belo Horizonte, com as recentes mudanças nas novas regiões russas, Moscou deve responder aos ataques ucranianos contra essas áreas da mesma maneira que responderia a ataques contra outras partes da Rússia.
A especialista enfatiza que embora a Rússia não tenha declarado guerra à Ucrânia oficialmente, a nova configuração dessas regiões, no âmbito da operação especial, permite uma resposta adequada aos ataques ucranianos.
Segundo Enham, é importante frisar que a Rússia nunca se negou a conversar e entrar nas vias diplomáticas, mas "toda tentativa russa de fazer isso foi cortada pelo lado ocidental". E Moscou, explica, segue com disposição para negociar, mas, após os últimos acontecimentos, "é preciso iniciar as conversas a partir deste novo ponto, que é a integração de quatro novas regiões ao território russo".
O que muda com o decreto?
Conforme anunciou o presidente russo, serão atribuídos poderes adicionais aos líderes dessas regiões. Putin também afirmou que é necessário criar defesa territorial nelas. Desse modo, o decreto contém diferentes níveis de respostas aos riscos de segurança emergentes. Para fazer essa avaliação, será criado um conselho de coordenação, liderado pelo primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin.
Na prática, de acordo com a professora, as regiões em questão já estavam sob as suas respectivas leis marciais, justamente pela condição de um conflito bélico. "Na verdade o que a Rússia faz é dar continuidade a esse quadro, passando [o regime especial] para a Federação da Rússia, em acordo com as leis marciais russas. E isso se faz necessário diante das necessidades desse conflito", afirmou.
"Na prática isso faz com que a Rússia possa garantir a segurança e as intervenções necessárias naquelas regiões específicas. Os decretos são para garantir as operações e o avanço das estratégias militares de Moscou."
Os principais pontos, no entendimento da cônsul honorária, são "garantir a segurança das pessoas, mais recursos para garantir a segurança dessa operação especial, promover o deslocamento necessário e a assistência financeira, além do acolhimento de imigrantes".
Ela explica que quando se fala em uma lei marcial, "há um surto generalizado", uma espécie de pânico pelo nome da ação. Mas o fato é que a medida será fundamental para tornar possível a ação das Forças Armadas da Rússia e garantir a segurança das populações locais.
Apesar disso, Kiev continuará com os ataques...
Embora a intenção do governo russo, como aponta Carolina Bernardes Enham, seja "reduzir os ataques de Kiev", pavimentando um caminho para um estágio de resolução do conflito, a questão revela-se mais delicada diante dos atores externos que ingressaram no conflito.
Ela aponta que existe um aumento dos recursos enviados para a Ucrânia e que "isso pretende aumentar os ataques e a ação ucranianos". Enham ressalta que o Congresso dos EUA está negociando, nesta quinta-feira (20), mais um pacote financeiro para a Ucrânia, avaliado em US$ 50 bilhões (R$ 260,6 bilhões).
"Os EUA aumentam a aposta continuamente. E quanto maior esse investimento, isso significa que esse recurso deve voltar, ter um retorno. Os EUA investem na Ucrânia, eles não estão fazendo caridade, não dão nada de graça", disse.
Para a professora, neste momento da operação especial, "a Rússia enfrenta equipamentos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e todo aparato bélico da Ucrânia é da OTAN. Em vias práticas, a Rússia está enfrentando a OTAN".
É possível falar em paz?
A chegada próxima do inverno europeu, com temperaturas abaixo de zero, adicionará ao conflito componentes importantes: a insatisfação social e a crise inflacionária na zona euro. A especialista sublinha que existem vozes dentro da Europa preocupadas com a paz e cita os esforços do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.
Segundo ela, "existe uma preocupação muito grande na Europa, e a renúncia da Liz Truss [primeira-ministra do Reino Unido] mostra as condições da Europa neste momento, que é o grande termômetro para a volta das vias diplomáticas". Ela entende que as recentes manifestações na Alemanha e na França também fazem parte desse contexto de pressão para um eventual retorno às vias diplomáticas.
"Está doendo nas finanças das pessoas, e a população civil está pressionando os governos para que eles possam buscar soluções mais rápidas", comentou.
Carolina Bernardes Enham avalia que esses protestos indicam uma posição contrária à OTAN e ao apoio incondicional a Kiev, "porque o consumidor final está pagando o preço desse apoio".
"Temos visto um aumento do apoio para cessar o conflito, porque as coisas podem e precisam caminhar para um entendimento. A Europa está no meio disso tudo, sofrendo as consequências econômicas e sociais desse conflito. A população força os governos a fazerem essa tentativa de retorno às negociações", analisou.
Segundo ela, a Europa é um termômetro que aqueceu demais, e a população clama, por meio de protestos e greves, que os governos repensem seus posicionamentos sobre o conflito ucraniano, principalmente diante da chegada do inverno europeu, um histórico aliado de Moscou nos últimos conflitos que marcaram o continente.