Desde a escalada do conflito ucraniano em fevereiro de 2022, o interesse pelo filósofo russo Aleksandr Dugin cresce no Brasil. Os militares estão entre os mais interessados na obra de Dugin, principalmente em sua dimensão geopolítica.
Dugin é considerado o principal autor da corrente neoeurasiana, que rejeita a globalização e sugere a formação de um mundo multipolar, no qual cada civilização teria um papel autônomo e igualitário.
Crítico feroz da sociedade contemporânea, Dugin identifica no expansionismo dos EUA a tentativa de estabelecer uma hegemonia cultural e econômica que não atenderia aos interesses da maioria da população mundial.
"Os militares brasileiros não leem Dugin no sentido de adesão ou repulsa ideológica. O interesse é encontrar ali algo proveitoso para o Brasil, isto é, como o Brasil poderia se posicionar no mundo multipolar em ascensão", revelou fonte próxima aos meios militares à Sputnik Brasil.
De acordo com a geopolítica de Dugin, o Brasil assumiria a liderança do bloco latino-americano, realizando o seu potencial de ser, como enfatiza o russo, uma "Roma tropical".
Filósofo russo Aleksandr Dugin, durante conferência de imprensa em Moscou, Rússia (foto de arquivo)
© Sputnik / Ruslan Krivobok
A fonte ouvida pela Sputnik Brasil revela que Dugin foi convidado a publicar um artigo em revista acadêmica da Escola Superior de Guerra. O filósofo russo já teria entregue o artigo, que aguarda publicação.
Canais no YouTube gerenciados por militares da reserva publicaram transmissões ao vivo com o filósofo russo, realizadas logo após o início da operação militar especial. Nelas, Dugin esbanja um portunhol fluente e apresenta a sua versão sobre os motivos da deflagração do conflito ucraniano.
A fonte nega, no entanto, que exista uma campanha organizada de divulgação do pensamento duginista entre os meios militares brasileiros.
"Vemos a rivalidade entre dois discursos: um diz que Dugin é um grande influenciador, que estaria formando o pensamento militar brasileiro, o que é um delírio; e outro é achar que ele não tem importância alguma e ninguém está interessado em lê-lo", disse a fonte à Sputnik Brasil. "Ambos os discursos são feitos por detratores de Dugin, e ambos estão incorretos."
Os militares brasileiros "estão abertos a Dugin, assim como estariam abertos para qualquer autor com ideias interessantes e relevantes para o Brasil".
Cachorro ladra a um drone durante cerimônia de graduação no 76º aniversário da Brigada de
Infantaria Paraquedista no Rio de Janeiro, 26 de novembro de 2021
© AP Photo / Silvia Izquierdo
Segundo a fonte, "se aparentemente há mais interesse em Dugin entre os militares do que entre os civis, é porque em geral militares se preocupam mais com geopolítica".
Geopolítica à brasileira
Apesar da importância de Dugin, os brasileiros têm uma teoria geopolítica para chamar de sua: o meridionalismo. Celebrada como a única teoria geopolítica brasileira totalmente autóctone, o meridionalismo foi formulado pelo professor doutor em geografia da Universidade de São Paulo (USP) André Roberto Martin.
O meridionalismo de Martin e o neoeurasianismo de Dugin dialogam em diversos aspectos.
"Eu tive o privilégio de encontrar com Dugin aqui no Brasil algumas vezes", revelou Martin à Sputnik Brasil. "Uma pessoa agradabilíssima, um intelectual de primeira, pelo qual eu tenho muito respeito."
Ambas as teorias partem de premissas comuns, como a necessidade de superar a sociedade neoliberal individualista.
"Temos uma afinidade muito grande quanto à leitura do tempo geopolítico presente: a de que há um risco de um confronto mundial entre a pretensão monopolar norte-americana, de um lado, e a tendência à multipolaridade de outro", explicou Martin.
Militares dos EUA na Alemanha (foto de arquivo)
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O geógrafo também compartilha com Dugin a crítica ao modelo neoliberal "que está colocando a humanidade em risco em todos os sentidos: o da sociabilidade, o dos valores e da própria existência humana, seja por hecatombe nuclear ou ambiental".
"O irracionalismo do mercado contaminou de tal maneira a humanidade que, sim, concordo com Dugin: temos que unir forças e derrotar essa ideologia que está prejudicando o mundo e pondo em risco o futuro da humanidade", sintetizou Martin.
No entanto, os teóricos divergem sobre como confrontar este inimigo comum. Martin explica que o neoeurasianismo "convoca uma luta espiritual das civilizações contra o neoliberalismo".
"Dugin prevê um acúmulo de forças geopolíticas que envolveria todas as sociedades tradicionais, formando um eixo que vai desde a Turquia até o Japão", relatou Martin. "Ele convoca uma identidade comum a partir das religiões e de ideias tradicionalistas."
O bloco meridional proposto por Martin, no entanto, não seria formado a partir de uma identidade cultural. Martins acredita que o Brasil, em parceria com países como a Índia e Austrália, poderia liderar um bloco meridional, que unisse todos os países do sul, atualmente destituídos de poder.
Presidentes da Rússia e Turquia conversam com ajuda de tradutor em cerimônia de abertura de gasoduto comum, em Istanbul, em 8 de janeiro de 2020
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"Não vislumbro a aliança desses países em função da cultura, mas sim em função de sua posição geopolítica, de forma muito realista", disse o geógrafo. "É uma aliança entre todos os que atualmente não têm poder de decisão. A união faz a força, simples assim."
Martin acredita que o Brasil pode contribuir de uma forma alternativa tanto à proposta ocidental, quanto à proposta eurasiana.
"Enquanto o Dugin vê um confronto entre Leste e Oeste, entre modernidade e tradicionalismo, eu vejo a possibilidade de uma terceira via", disse Martin.
"De maneira resumida, poderíamos dizer que o neoliberalismo [liderado pelos EUA] se pauta pelo lema 'mercados livres, corpos livres', que é persuasivo e se espalha pelo mundo. Isso é rechaçado pelo eurasianismo, que propõe 'mercados controlados, mas corpos também controlados'. Já o meridionalismo seriam 'mercados controlados e corpos livres'", sintetiza o geógrafo.
Assim como o eurasianismo, o meridonalismo também é mais estudado e aceito pelos meios militares do que civis.
"Acredito que a academia brasileira tenha ficado com um pé atrás com a geopolítica, por associá-la aos anos de chumbo e à linha dura do regime militar", lamenta Martin.
Militar em posição na frente de uma instalação da Marinha do Brasil na ilha da Marambaia, no Rio de Janeiro
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A analista geopolítica no Instituto Mundo Multipolar Mariana Slickmann também lamenta que a geopolítica seja um assunto restrito à caserna.
"A geopolítica precisa ser mais acessível ao público, já que ela trata dos interesses nacionais e dos caminhos que o Brasil pode trilhar", disse Slickmann à Sputnik Brasil.
Segundo ela, caso a sociedade brasileira estivesse comprometida com estratégias geopolíticas mais amplas, poderia estar em uma posição similar à de países como Turquia ou Índia, "que estão sabendo se posicionar" diante dos conflitos internacionais.
"Mas para isso é necessário atualizar o projeto de Estado brasileiro, que não está acompanhando a formação do nascente mundo multipolar", concluiu a historiadora.