Santa Quitéria: o que falta para o Brasil se tornar autossuficiente em urânio?
21:50, 10 de novembro 2022
Um antigo projeto da Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB) pretende explorar urânio e fosfato em uma cidade no interior do Ceará e busca viabilização nuclear e ambiental para receber um investimento bilionário. A Sputnik Brasil ouviu o consórcio responsável pelo projeto e o ex-presidente da INB Aquilino Senra para discutir o assunto.
SputnikApesar da formação de um consórcio para a exploração da jazida de Itataia, localizada em Santa Quitéria, no interior do Ceará, ainda há questões que impedem a realização do projeto. O Consórcio Santa Quitéria reúne a estatal
Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB) e a Galvani Fertilizantes.
A INB é a detentora dos direitos minerários da jazida. Conforme o próprio
site da estatal, em Itataia
são encontrados fosfato e urânio de forma associada. O projeto de exploração do local tem como objetivo a produção de fertilizantes fosfatados de alto teor, fosfato bicálcio e concentrado de urânio. Esses produtos seriam utilizados
na agricultura,
suplementação animal e
produção de energia elétrica, respectivamente.
O Consórcio Santa Quitéria estima que a exploração da jazida é capaz de gerar 2,8 mil empregos diretos e indiretos e R$ 100 milhões em massa salarial anual. Além disso, o consórcio alega uma expectativa de investimento de R$ 2,3 bilhões para a exploração no local.
A Sputnik Brasil ouviu o consórcio e um engenheiro nuclear que já presidiu a INB para explicar os detalhes e os riscos desse projeto.
Consórcio destaca fertilizantes, mas não informa detalhes sobre investimento anunciado
Em entrevista à Sputnik Brasil, o consórcio responsável alega que o projeto é
"peça fundamental" tanto do
Plano Nacional de Fertilizantes (PNF) quanto do
Plano Nacional de Energia 2050. Em ambos, a exploração dos recursos é
citada como potencial.
Em resposta à Sputnik Brasil, o Consórcio Santa Quitéria afirma que o empreendimento deverá produzir anualmente cerca de 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados, 220 mil toneladas de fosfato bicálcico — usado na nutrição animal — e 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio para a geração de energia elétrica nas usinas nucleares de Angra dos Reis.
O consórcio ressalta que a extração dos fertilizantes pode ajudar a reduzir a dependência brasileira da importação desse tipo de insumo.
"Hoje, mais de 85% dos fertilizantes consumidos no Brasil são importados. Com a plena operação do Projeto Santa Quitéria, serão produzidos cerca de 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados anualmente. Somada a produção atual da Galvani, que forma o Consórcio Santa Quitéria junto à INB, o volume representará 25% da demanda atual das regiões Norte e Nordeste", afirma o consórcio.
Apesar das previsões, o consórcio ressalta que o projeto ainda está em processo de licenciamentos ambiental e nuclear. O consórcio não apontou uma data de início para a exploração. "As obras e a operação do empreendimento serão iniciadas somente após a liberação dos órgãos reguladores", diz o consórcio.
Em seu site, o Consórcio Santa Quitéria alega ainda que R$ 2,3 bilhões serão destinados ao projeto. Questionado sobre a origem e disponibilidade desse recurso, o consórcio afirmou à Sputnik Brasil que "este tema será tratado no momento adequado".
Manejo do urânio tem riscos ambientais, explica engenheiro
Em entrevista à Sputnik Brasil, o engenheiro nuclear Aquilino Senra, ex-presidente da INB e professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explicou que o processo de mineração do urânio é relativamente seguro em termos de radioatividade, mas precisa atender a importantes regulações ambientais e de segurança.
O físico explica que na mineração há "riscos de deposição de partículas radioativas e não radioativas sobre a cobertura vegetal", além de possíveis problemas de alteração da qualidade do ar e contaminação de mananciais. Esses riscos precisam ser observados em relação ao licenciamento do projeto.
Ainda sobre o
risco da radioatividade, o pesquisador aponta que
o maior risco está após o processo de enriquecimento do urânio — risco que aumenta após o uso nos reatores nucleares para a produção de energia.
"Para produção de energia, o urânio precisa passar por uma etapa importante, que é o enriquecimento isotópico, que eleva o percentual de 235U [isótopo do urânio] de 0,7% encontrado na natureza para 5%, necessário para o uso em reatores nucleares", detalha.
Senra explica que há dois
processos de mineração de urânio, um quando ele é o minério principal e o outro quando é o minério secundário.
"No depósito de Santa Quitéria, o urânio é o minério secundário agregado ao fosfato, que no caso é o minério principal", aponta o professor.
"Na mineração do urânio, quando ele é o minério principal, como é o caso da mina de Lagoa Real, em Caetité, na Bahia, a extração é feita em diversas etapas de um processo físico-químico. Depois de britado, o minério é disposto em pilhas e irrigado com solução de ácido sulfúrico para a solubilização do urânio contido nele", explica.
O professor acrescenta detalhes sobre as etapas de concentração do mineral:
"A concentração do urânio é realizada pelo processo de extração por solventes orgânicos, seguida da separação por precipitação, secagem e estocagem em tambores com concentrado de urânio."
Projeto pode gerar autossuficiência em urânio
O ex-presidente da INB lembra que a jazida em Santa Quitéria é conhecida desde a década de 1970 e que diversas tratativas foram realizadas para a exploração com empresas interessadas no fosfato até o acordo com a Galvani. Em relação ao urânio, o professor aponta que o volume de extração anual divulgado pelo consórcio na jazida de Santa Quitéria — 2,3 mil toneladas por ano — poderia fazer do Brasil autossuficiente.
"A produção, a princípio, de [cerca de] 2 mil toneladas/ano de Santa Quitéria tornaria o país autossuficiente na produção de urânio, além de aumentar a segurança de produção, uma vez que haverá duas minas em operação, a de Santa Quitéria e a de Caetité", aponta.
Segundo as estimativas do professor, esse volume de extração garantiria o funcionamento de diversas usinas nucleares no Brasil por décadas. Atualmente, apenas duas usinas operam no país.
"Somadas dariam para a operação das duas usinas nucleares de Angra dos Reis mais oito usinas nucleares do porte da usina Angra 2 por um período de 60 anos. E o excedente poderia ser exportado, mantidas as reservas previstas por lei", conclui.