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Além de futebol: Catar tem produtos militares do Brasil e cadeira cativa no governo Bolsonaro

Além da Seleção brasileira, diversos membros do governo e da família Bolsonaro visitaram o Catar nos últimos anos, promovendo a venda de produtos militares, realizando motociatas e voltando pra casa com relógios de luxo no punho.
Sputnik
Apesar da exaltação da Copa do Mundo, as relações entre o Brasil e o Catar não se resumem à esfera futebolística. Nos últimos anos, o país do golfo foi um dos mais visitados pelo presidente Jair Bolsonaro, ocupando papel central na promoção de produtos de defesa brasileiros.
Bolsonaro esteve em Doha em 2019 e 2021, acompanhado de delegações de peso, com ministros da Defesa, relações exteriores, seus filhos e até a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. O Catar figura entre os países mais visitados pelo mandatário brasileiro durante seu mandato, perdendo somente para potências como os Estados Unidos.
A comitiva brasileira de 2019 não parece ter se arrependido de aturar o voo de 13 horas até a capital catariana, uma vez que foi agraciada com relógios de luxo das marcas Hubolt e Cartier, com valor estimado de até R$ 53 mil cada.
Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, chega em seu hotel em Doha, durante visita oficial ao Catar, 17 de novembro de 2021
Figuras como o então chanceler Ernesto Araújo, o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, e ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Augusto Heleno, foram agraciadas com os bens de luxo, que geraram processo na Comissão de Ética da Presidência da República. A única autoridade brasileira a devolver o mimo recebido foi o então embaixador do Brasil em Doha, Roberto Abdalla, informou o portal Jota.
Outra figurinha carimbada na capital do Catar é o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que buscou selar cooperação entre o Instituto Conservador Liberal, o qual presidente, e agremiações semelhantes nos países do golfo Pérsico, conforme reportou o Congresso em Foco. As informações sobre as viagens do filho 03 do presidente à região estão, no entanto, protegidas por sigilo.
Presidente Jair Bolsonaro dirige moto Harley-Davidson nas ruas da capital do Catar, Doha, 17 de novembro de 2021
Em 2020, a viagem de Jair Bolsonaro a Doha foi marcada por uma motociata e pelos vídeos nos quais o presidente mostrava seu luxuoso quarto de hotel para a população brasileira.

Indústria de Defesa

Esses acontecimentos, no entanto, escondem uma parceria significativa entre o Catar e a indústria de defesa brasileira. A monarquia do golfo tem interesse em investir e adquirir tecnologia militar de países não centrais, a fim de diversificar o seu portfólio de compras e diminuir a dependência de países como EUA, França e Reino Unido.
Empresas brasileiras do setor de defesa atuam no Catar há décadas, com destaque para a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) e para a Condor, fabricante de tecnologias não letais. Além disso, a empresa do setor aeroespacial Avibras fornece seu Sistema ASTROS às Forças Armadas do Catar desde 2014.
Helicópteros das três Forças Armadas (Marinha, Exército e Força Aérea), realizam manobras no Navio-Aeródromo Multipropósito Atlântico em movimento durante a Operação Poseidon 2021
Para dar continuidade à essa cooperação em defesa, uma extensa delegação brasileira participou da feira militar MIlipol, em Doha, no Catar, em 2021. O Brasil foi um dos poucos países que montou estande próprio no evento, reunindo nove empresas do setor nacional.
O governo foi representado por membros da Secretaria de Produtos de Defesa (SEPROD) do ministério da Defesa, com o então secretário Marcos Rosas Degaut Pontes. A iniciativa privada contou com a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) e empresas como a Atech, Avibras, CBC, Condor, Embraer, Kryptus e Taurus.
Armas de pequeno porte da brasileira Taurus
Reconhecendo o potencial das relações entre Brasil e Catar na área de defesa, os países discutem há anos a formação de um fundo bilateral de investimentos na indústria bélica. A iniciativa seria financiada pela Barzan Holdings, braço de investimento do Ministério da Defesa do Catar.
Na expectativa de realizar esse projeto, o então Ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, assinou acordo de cooperação militar com seu homólogo catariano, Khaled Al-Attiyah, durante a viagem presidencial ao país de novembro de 2021.

Bolsonaro nas Arábias

O foco da política externa de Bolsonaro no Catar pegou muitos analistas de surpresa. Porém, o estreitamento das relações vem de longa data. Em 2010, o então presidente Lula visitou o país, seguido pelo então vice-presidente Michel Temer, em 2011, e Dilma Rousseff, em 2014.
De acordo com o mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Maiko Jhonata de Araújo Gomes, a atenção dispendida ao Oriente Médio durante os primeiros mandatos de Lula foi sem precedentes na história brasileira.
"O Brasil se destacou tanto na região naquele período, que foi o primeiro país extrarregional a ser convidado para ser Estado observador na Liga Árabe", disse Gomes à Sputnik Brasil.
Segundo ele, o ritmo diplomático intenso não foi mantido durante o governo Dilma, em função da crise econômica brasileira e dos acontecimentos da primavera árabe. A retomada das relações realizada no governo Bolsonaro, no entanto, segue novos parâmetros.
"Uma grande diferença da abordagem do governo Bolsonaro é que as relações não se dão mais em nível regional", disse o professor de Relações Internacionais e doutorando da Universidade de Tomsk, Yasser Hassan Saleh, à Sputnik Brasil. "Nos governos Lula e Dilma, o foco era na aproximação entre a América do Sul e os países árabes no geral."
De acordo com Saleh, Bolsonaro preferiu manter relações estritamente bilaterais com os países do golfo, privando-as de caráter estratégico.
"Essas relações não têm caráter estratégico, porque não ambicionam transformar a estrutura de poder internacional", disse Saleh. "Os objetivos dessas relações ficam, dessa forma, restritos."
Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante visita ao estádio Lusail, em Doha, Catar, 17 de novembro de 2021
Gomes ainda nota que a preferência por parceiros como os Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Catar reflete o alinhamento automático da política externa bolsonarista aos EUA.
"Essas relações atendiam a interesses dos EUA", notou Gomes. "Nos aproximamos de países aliados dos EUA e nos afastamos de outros atores, como Irã e Palestina."
O especialista lembra que o Brasil chegou a negar o reabastecimento de embarcação iraniana em seus portos e não condenou o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani por forças norte-americanas, considerando o incidente uma decorrência da "luta contra o flagelo do terrorismo", conforme expressou o Itamaraty em nota.
Apoiador do candidato presidencial Jair Bolsonaro usa uma máscara representando o presidente dos Estados Unidos Donald Trump durante as comemorações na Avenida Paulista, em São Paulo
Apesar das dificuldades em manter relações amigáveis com todos os atores dessa região conturbada, os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil acreditam que o Brasil tem muito a ganhar no golfo Pérsico.
"Estamos falando de um mercado de consumo muito forte, um centro de integração comercial e empresarial, e um polo de atração de capital da Eurásia e da África", lembrou Saleh. "Os países do golfo são grandes exportadores de capital, e o Brasil precisa de capital."
Para Gomes, a política de aproximação dessas monarquias foi bem-sucedida, apesar de suas contradições nas áreas de direitos humanos e proteção às minorias sociais.
"No final de 2021, as exportações brasileiras para o Oriente Médio totalizaram US$ 14 bilhões, um aumento de cerca de 26% na receita em comparação ao ano anterior", disse Gomes. "Os principais importadores de produtos brasileiros foram EAU e Arábia Saudita."
Presidente Jair Bolsonaro recebe cumprimentos ao desembarcar em Dubai, 23 de janeiro de 2021
As exportações brasileiras para os EAU aumentaram em 13% entre 2020 e 2021, enquanto as para a Arábia Saudita expandiram em 9,78%.
"Também temos um aumento nas importações brasileiras de produtos da região. Em 2021, a compra de produtos árabes foi de US$ 9,82 bilhões, um aumento de 82% em comparação a 2020", revelou o especialista. "Uma boa parte dessas importações veio advinda dos EAU e da Arábia Saudita."
Os resultados da aproximação com o Catar também são eloquentes. Nacionais brasileiros não precisam mais emitir visto para visitar a monarquia, e o número de voos diretos operados pela empresa Qatar Airways entre cidades brasileiras e Doha não para de aumentar.
"A aproximação com esses países deve continuar com o governo Lula 3, mas será muito difícil ignorar questões sociais e a retomada do apoio à causa palestina no Brasil", concluiu Saleh.
O Catar é um dos países com a maior renda per capita do mundo. Sua população é estimada em 2,8 milhões de habitantes, dos quais cerca de 1,2 mil são brasileiros. A monarquia é a maior exportadora de gás natural liquefeito do mundo e possui a terceira maior reserva de gás natural confirmada do planeta.
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