Começou em setembro a construção da primeira das quatro usinas nucleares flutuantes do projeto Cape Nagloynyn, que alimentará um enorme parque industrial de mineração no Ártico russo.
Com suas operações estimadas para começar em 2027, o projeto é uma síntese da relevância que o Ártico terá para o futuro econômico de Moscou e Pequim, pois revela que a região se tornou de fato uma prioridade para os dois países.
A avaliação de Tito Lívio Barcellos Pereira, especialista em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é que o Ártico se tornará um palco, nos próximos anos, de uma nova Guerra Fria que está sendo gestada entre as potências globais.
De um lado, explica ele, estarão Rússia, China e outros países "que podem se envolver" nas discussões envolvendo a região, como Irã, Índia, Paquistão e até mesmo o Brasil. Do outro, a aliança militar liderada pelos EUA, formada principalmente pelos países que fazem parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A nova usina nuclear flutuante russa em construção na China
Chamada de Cape Nagloynyn, a parceria entre Moscou e Pequim envolve a construção, em um primeiro momento, de quatro usinas nucleares flutuantes. Elas abastecerão um complexo industrial de mineração que será criado na região.
Uma barcaça de 140 metros será equipada com dois reatores RITM-200S e contará com estruturas para contenção e armazenamento de resíduos radioativos, além de tanques de combustível para diesel. Quando pronta, a Atomflot, companhia da Rússia, assumirá a propriedade e operação da usina nuclear flutuante.
Ela será transferida para o Cape Nagloynyn, no Ártico russo, onde fornecerá 105 MW a um novo porto e à mina de cobre e ouro de Baimskaya. No total, o desenvolvimento do projeto em Baimskaya demanda cerca de 300 MW.
Portanto três dessas usinas flutuantes são necessárias, enquanto uma quarta será instalada "como backup para interrupções durante o reabastecimento e manutenção".
A importância do projeto
Enquanto Pequim e Moscou buscam parcerias econômicas e militares para garantir a hegemonia sobre a região, outras potências, como os EUA e alguns países da União Europeia (UE), também planejam estar presentes no Ártico.
É notório que a região ártica, como explica Tito Lívio, se tornou um foco de atenções "em razão do degelo em algumas regiões, o que tornou possível a criação de novas rotas marítimas, como a Rota Marítima do Norte, da Rússia, que serão disputadas pelos países presentes na região".
"Do ponto de vista geográfico e geoeconômico, o Ártico é uma importante fronteira", diz o pesquisador, enfatizando que, no passado, houve uma tentativa de estabelecer a região como um pólo de pesquisa internacional a exemplo da Antártica.
"Há dez anos, a gente poderia pensar em soluções multilaterais para a questão ártica. Mas, devido aos recentes acontecimentos no mundo, como o degelo resultante do aquecimento climático, o conflito na Ucrânia e a guerra comercial entre China e EUA, isso está cada vez mais distante, avalia o especialista.
Tito Lívio explica que é difícil pensar atualmente em uma nova rodada de negociações entre os países-membros do Conselho do Ártico, assim como "é improvável acreditar que haverá uma mudança filosófica na região, no âmbito de transformá-la, por exemplo, em uma área de pesquisa internacional".
Novas bases militares: a nova cara do Ártico
Para Tito Lívio, que acompanha há muitos anos o desenvolvimento ártico, o cenário mais pragmático para a região nos próximos anos é o de construção de diversas bases militares por diferentes países, cada um deles defendendo os seus próprios interesses, apesar das alianças locais.
Ele explica que além da importância dos recursos e das vias de navegação, "o Ártico tem um valor estratégico desde o fim da Guerra Fria: ele é a rota mais curta para os bombardeiros nucleares e mísseis intercontinentais, tanto russos quanto da OTAN".
Segundo Tito Lívio, "à medida que a ruptura se intensifica, a região servirá como uma fronteira para esses dois blocos de poder se chocarem e competirem por vantagens estratégicas e econômicas".
O Pentágono prevê publicar em março de 2023 a primeira atualização da estratégia para o Ártico desde 2019, incluindo as capacidades necessárias para os caças americanos combaterem em temperaturas extremamente baixas. A base aérea de Thule, na Groenlândia, adquirida neste ano, deverá abrigar bombardeiros e caças de longo alcance dos Estados Unidos, tal como foi durante a Guerra Fria.
"Enquanto [...] tem bases aéreas na Groenlândia e em algumas ilhas próximo ao Ártico, como no Alasca, Washington busca criar desequilíbrios no Conselho do Ártico para enfraquecer a presença russa", disse Tito Lívio.
Segundo ele, "é preciso lembrar que, com exceção da Rússia, os demais membros do conselho são aliados militares da OTAN".
Evidentemente a Rússia, em contrapartida, também busca aumentar a sua presença militar em pontos estratégicos do Ártico, "com bases aéreas e aeronavais, ampliando a sua presença militar ao mesmo tempo em que busca reivindicar novos territórios".
A presença russa
O especialista relembra que, em 2018, Moscou "fez uma expedição que provou cientificamente que parte do oceano Ártico é uma extensão do seu litoral. Com isso, juridicamente, a Rússia aumentou o seu território marítimo, possibilitando gerir mais recursos, depósitos minerais subaquáticos para diversos usos industriais, e muitas rotas".
Segundo a nova doutrina naval de Moscou, anunciada em agosto, a Rússia vê a Rota Marítima do Norte como águas internas, usando-a como uma "rota de transporte nacional segura e competitiva o ano inteiro". O país também planeja continuar liderando a construção de quebra-gelos e investindo na infraestrutura da frota nuclear.
A Rota Marítima do Norte se encontra na zona econômica exclusiva da Rússia, semelhante à Passagem do Noroeste, no Canadá. É mais curta que a mesma viagem através da rota do Canal de Suez, mas permite o tráfego apenas por alguns meses durante o ano devido às condições climáticas extremas.
O especialista ainda revela que o interesse russo no Ártico tem obviamente a ver com o desenvolvimento industrial do país. Segundo ele, como a Rota Marítima do Norte passa pelo litoral russo, principalmente por essas regiões litorâneas russas que são quase desabitadas por conta do frio, "haveria um fluxo de investimentos muito forte, capaz de promover novos terminais portuários, locais para reabastecimento de navios e armazenamento de mercadorias".
Como explica Tito Lívio, "falando de um país que tem grandes reservas de minerais e gás, como a Rússia, a abertura das novas rotas interessa a vários países pois permite viagens mais curtas entre diferentes regiões do continente euro-asiático". Para ele, uma forma de garantir a soberania sobre a região é a ampliação de bases para estudos e pesquisas. Outra é a criação de bases militares.
A importância da China
Conforme aponta o analista geopolítico, "países como a China, a Índia, e outros da UE são meros observadores do Conselho do Ártico". No entanto, conforme cresce a importância das novas rotas para o comércio na região, o interesse dessas nações também aumenta.
Segundo ele, o projeto Cape Nagloynyn demonstra a sensibilidade que o governo chinês tem com relação a uma região que está fora da realidade territorial dele. Segundo Tito Lívio, Pequim compreende que "para garantir a segurança energética e industrial da China, o comércio pelo Ártico será fundamental".
Ele lembra que a Rússia já toca projetos de interesse chinês na região, "como o polo de gás no litoral Ártico, [perto do] extremo do Alasca, [no] distrito autônomo Yamalo-Nenets". A região, diz ele, faz o transporte de gás natural ao mercado chinês, seja por via marítima, seja ligando essas zonas de produção industrial à rede ferroviária da Rússia na Sibéria, que vai até o nordeste da fronteira chinesa.
"É importante frisar que existe uma relação de interdependência entre esses dois países", disse o especialista, apontando que a Rússia "busca aumentar seu processo de industrialização e modernizar a sua economia, o que beneficiaria os mercados asiáticos, em particular o chinês".
Além disso, para a China, "que tem esse projeto da Rota da Seda, é importante buscar integrar as regiões a partir de corredores de exportação para alimentar sua demanda industrial", complementou. Vale lembrar que Pequim lançará um satélite para monitorar as rotas marítimas do Ártico, uma prova de seus interesses na região polar.
"Embora a China não tenha acesso direto ao Ártico, ela poderia se beneficiar da infraestrutura russa para chegar à região. Pequim está investindo em uma frota de quebra-gelos, que são navios fundamentais para abrir rotas na região. E se a China busca uma frota mercante de quebra-gelos, é porque ela tem horizontes, de curto e médio prazos, de estar atuando na região", avaliou.