'Sem justiça, nossa verdade não está reconhecida': os rumos do caso da boate Kiss após dez anos
11:10, 27 de janeiro 2023
Redação
Equipe da Sputnik Brasil
A Sputnik Brasil conversou com uma das vítimas sobreviventes do incêndio sobre como o evento ainda impacta sua vida enquanto a Justiça não dá um ponto final ao caso. Além disso, um especialista em direito penal esclareceu à reportagem os próximos passos do processo, depois que o julgamento foi anulado por violar direitos da defesa.
SputnikJá se passaram dez anos de uma das maiores tragédias ocorridas no país. O incêndio que vitimou 242 pessoas e deixou 636 feridos na boate Kiss, em Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul, no dia 27 de janeiro de 2013, completa uma década nesta sexta-feira (27).
Apesar de sua proporção e repercussão, o caso ainda está em aberto e aguardando novo julgamento. Isso porque o primeiro, realizado em dezembro de 2021, foi revertido em agosto do ano passado e acabou anulado devido a falhas processuais.
"Na minha cabeça fica nítido que, quando não se tem justiça, a história fica sem ter a legitimidade necessária para que a gente possa recontá-la", afirma Gabriel Rovadoschi Barros, sobrevivente do incêndio, hoje psicólogo e presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Segundo ele, sem um desfecho as discussões sobre o ocorrido ficam em "um plano nebuloso de acusações e incertezas". Gabriel conta que ele, os sobreviventes e as famílias das vítimas têm plena consciência sobre os erros e omissões dos envolvidos, mas a história continua sendo distorcida exatamente pela indefinição do caso.
"Embora a gente tenha essa certeza e a convicção da nossa verdade, quando não se tem o estabelecimento da justiça, essa nossa verdade ainda não está reconhecida. E a falta de reconhecimento prejudica as formas de contar e levar a história adiante e a forma como as pessoas mais distantes se sentem ao se aproximar dessa história", explicou.
Os
quatro réus — Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate; Marcelo de Jesus, vocalista da banda que se apresentava na casa antes do incêndio; e Luciano Bonilha, auxiliar da banda —
haviam sido presos e condenados, mas com a anulação
ganharam a liberdade enquanto esperam a definição da Justiça.
O julgamento anulado foi conduzido no
Tribunal do Júri do Foro Central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Já a nulidade do processo foi decretada pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), após acolher parte dos recursos das defesas dos réus.
Atualmente o caso está em fase de conclusão de diligências, antes de a 2ª Vice-Presidência do TJRS decidir se admite os recursos movidos pela acusação e pelas defesas, conforme noticiou o
G1.
Entre os pedidos estão a retomada do julgamento na 1ª Câmara Criminal e a prisão provisória dos réus. Se os recursos forem aceitos, eles serão encaminhados para análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) para confirmação.
"Eu vivo até hoje tentando dar conta da falta de sentido que tem tudo que aconteceu. Por dentro, tento dar sentido para tudo que eu vivi e tento elaborar o luto do Gabriel que se foi também há dez anos e entender o que sobrou, para onde eu tenho construído minha vida e de que forma as respostas que eu tenho achado são para dar conta da violência e do crime que foi cometido, de tudo que a gente sofreu", relata Gabriel.
A vítima conta que a cidade como um todo — Santa Maria tem cerca de 280 mil habitantes — sofre "por não encontrar caminhos para se reconhecer enquanto pertencente a essa história". Segundo ele, ao longo dos anos, o movimento de solidariedade e compaixão que se formou à época "foi se dissipando".
"Hoje há um cenário em que a gente sofre ataques por lutar por justiça. Sofre ataques por lutar pela memória", desabafa. "Então a justiça tem, sim, um papel fundamental, necessário para que a gente concretize o que se passou, concretize essas narrativas, e possa ter formas concretas de contar essa história, para que o futuro e as próximas gerações possam se beneficiar das garantias que vão sendo criadas conforme a justiça é estabelecida."
Por isso a AVTSM criou uma campanha para marcar os dez anos da tragédia, com o objetivo de "tentar reconciliar a cidade com a sua própria história", nas palavras de Gabriel.
Segundo ele, Santa Maria pode "construir um futuro que reconheça tudo que aconteceu, compartilhando o amor que é tão forte no movimento e que sempre cabem mais pessoas para desfrutar do benefício desses nossos propósitos, carinho e luta como um todo".
"Esta é a realidade de muitas pessoas que vivem em Santa Maria também. Não é que elas não queiram falar sobre, mas muitas vezes não sabem como participar, não sabem como se sentirem pertencentes a isso", afirma.
Segundo Gabriel, a programação da campanha, no centro da cidade, terá muitas homenagens e painéis que buscam justamente a reconciliação, o acesso a informação àqueles que vão participar e do público em geral, "para que as pessoas se sintonizem com o movimento e reconheçam por onde anda a história, para que possam acompanhar daqui para frente o desdobrar e compor a nossa luta com mais segurança".
'Série de equívocos' no julgamento levou à anulação do júri
De acordo com Yuri Carneiro Coelho, especialista em direito penal e professor no MeuCurso Educacional, a lentidão na resolução do caso se explica exatamente pela "dimensão" do episódio e pela quantidade de vítimas envolvidas.
Ele aponta que casos como este costumam tardar a ter seu desfecho, já que envolve quase uma centena de vítimas, demandando análises mais extensas.
"Há uma tendência a demorar um tempo exacerbado, levando em consideração que a defesa tem que analisar uma série de fatos relacionados a todas essas vítimas, e o próprio Ministério Público [MP] também, para comentar tudo isso dentro de um processo que termina sendo moroso pela sua dimensão, não pela morosidade da Justiça brasileira em si, mas por conta da sua dimensão, porque os recursos subiram até as instâncias superiores. Então tem essa característica", explicou Coelho.
E foi justamente pela falta da observação da garantia das análises da defesa que o júri de 2021 acabou anulado, em meio a outras irregularidades em formalidades processuais.
O especialista lembra que, em uma das principais falhas relativas à defesa dos réus, não foi concedido tempo suficiente de análise quanto à utilização de uma maquete 3D que representava a boate.
Segundo ele, o objeto foi posto nos autos "sem um prazo adequado suficiente para que a defesa fizesse a devida análise".
"Houve uma série de equívocos na forma de juntada dessa maquete, que é um documento. Então realmente todas essas questões processuais poderiam, sem dúvida, ter levado, como levaram, à nulidade do julgamento", disse.
A anulação também foi corroborada por uma conversa do juiz com os jurados sem a presença dos representantes do MP e dos advogados de defesa. Coelho aponta que, "ainda que para esclarecimento de questões, isso não poderia ter sido feito".
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Entre outras irregularidades, um outro grave erro, segundo ele, foi a alteração no procedimento de escolha dos jurados, feita após três sorteios, quando o código do processo penal "determina um único sorteio para isso".
"Infelizmente eles aconteceram [os erros]. Não se pode passar por cima dessas formalidades, tendo em vista o denominado princípio da plenitude de defesa. A defesa não pode ter contra si a prática de atos que do ponto de vista legal violem preceitos que a gente chama de 'paridade de armas', ou seja, uma relação completamente igual entre acusação e defesa, e o juiz não pode ir além daquilo que a lei determina fazer", afirma o especialista.
Da mesma forma que as formalidades foram importantes para a acusação, também seriam para a defesa, aponta o especialista.
"Nesse caso, as formalidades foram descumpridas em prejuízo da defesa. Então é importante ter isso em mente, até para que não ocorram nulidades dessa natureza de novo no processo do julgamento", alertou.
12 de janeiro 2023, 01:15
O que será feito agora?
Apesar dos apontamentos direcionados aos procedimentos, Coelho reforça que, na anulação, não houve discussão do mérito da questão ou culpabilidade, atendo-se à anulação do júri.
Sobre a efetiva responsabilização, o professor de direito penal afirma que o caso ainda está em aberto. Ele diz que os réus podem ser condenados por homicídio doloso ou culposo ou, eventualmente, ser absolvidos.
"Isso tudo será discutido. A defesa utiliza várias estratégias, mas as provas, levando realmente à clara demonstração [de culpa], e isso o júri vai dizer, podem servir de efeito para que outras entidades, boates tenham devida clareza e precisem tomar muito cuidado na organização dos seus eventos para evitar situações trágicas, como esse fato na boate Kiss", disse.
Neste momento a Justiça vai julgar recursos interpostos tanto pela defesa como pelo MP, indicou o especialista.
"Pode levar mais um tempo, sem dúvida. Mas nesse caso não acredito em prescrição, como alguns apontaram. Muito difícil, salvo se houver uma condenação, uma desclassificação pelo júri para homicídio culposo, e aí se corre o risco de lá na frente ter incidência de uma prescrição. Mas a priori, se porventura o júri condenar os réus por homicídio doloso a título eventual, com certeza a prescrição não incidiria e eles cumpririam pena em face da eventual condenação", argumentou.
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Impactos jurídicos do caso
Segundo o especialista, não houve precedentes criados pelo caso da boate Kiss para o direito penal. O que se passou a debater no processo, aponta Coelho, diz respeito à decisão do julgamento pelo júri, levantando a discussão sobre "dolo eventual" e "culpa consciente".
Em casos qualificados como dolo eventual, apesar de o acusado não desejar causar um resultado danoso, ele prevê e aceita sua possibilidade. Já com relação à culpa consciente, o envolvido enxerga a possibilidade do dano, mas acredita sinceramente que não ocorrerá.
"Tivemos decisões muito discrepantes dentro dos tribunais nesse período, uma imprecisão muito grande de conceitos sendo definidos, que acabaram resultando na manutenção do julgamento [do caso da boate] na esfera do júri, ou seja, [indicando] que houve dolo eventual na conduta dos agentes que estão respondendo pelos crimes da boate Kiss", explicou. "Mas na legislação especificamente não tivemos alterações por conta disso, do ponto de vista do direito penal", acrescentou.
23 de janeiro 2023, 16:33