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Analista: quem compra de empresas implicadas em trabalho escravo é conivente com essa prática

© Foto / Agência Brasil / Fernando FrazãoExposição "Sankofa: Memória da Escravidão na África", resultado da viagem do fotógrafo Cesar Fraga por nove países africanos, em 29 de outubro de 2016
Exposição Sankofa: Memória da Escravidão na África, resultado da viagem do fotógrafo Cesar Fraga por nove países africanos, em 29 de outubro de 2016 - Sputnik Brasil, 1920, 14.12.2022
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O trabalho escravo é uma das grandes chagas ainda existentes no Brasil e no mundo. De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), 50 milhões de pessoas vivem em situações análogas à escravidão globalmente. Ou seja, em média, 1 a cada 150 habitantes do planeta é submetido ao crime da escravidão contemporânea.
Paulo Renato Fernandes da Silva, professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, explicou, em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, que o trabalho escravo "não se apresenta naquele feitio que conhecíamos antigamente".
As modificações no que configura trabalho escravo ocorreram ao longo do século XX, por meio de legislações internacionais, principalmente as que foram especificadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Especificamente no Brasil, o grande marco é a Lei 10.803, sancionada em 2003, que trouxe para o arcabouço legal brasileiro as classificações contemporâneas do que se considera o trabalho em condições análogas à escravidão.
Mais: a legislação também alterou o artigo 149 do Código Penal, o qual especifica o que se enquadra nessa prática criminal.

"Nossa legislação em 2003 adotou no nosso país essa concepção moderna de trabalho escravo [com base na OIT]. É o que chamamos de trabalho escravo contemporâneo ou servidão contemporânea. Hoje o trabalho escravo assume feitios de trabalho forçado, de jornada exaustiva, de condições degradantes e de servidão por dívida. Então há [a partir desse momento] uma tipificação, como se fala no direito penal", explicou Silva.

Ricardo Rezende, professor de direitos humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador de pesquisa do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) e do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), ambos da UFRJ, também considera a lei de 2003 um capítulo importante para o combate a essa questão.

"A mudança no Código Penal a partir da legislação de 2003 é um marco porque não se trata apenas de trabalho forçado: havendo trabalho exaustivo ou trabalho degradante, também pode ser considerado um trabalho análogo à escravidão. De fato foi uma mudança muito importante", disse.

Ambos os especialistas notam que a tipificação é importante justamente para que as autoridades competentes da polícia e do Judiciário tenham balizas legais para fiscalização, multas, punição e sentenças contra quem adota a prática criminosa.
Mundioka #148 - Sputnik Brasil, 1920, 14.12.2022
Mundioka
Mão de obra escrava e as grandes marcas de roupa

"Toda vez que há a denúncia ou constatação de trabalho escravo, os órgãos de fiscalização do nosso país atuam para verificar se é uma hipótese de trabalho escravo ou não. A partir dessas investigações, são feitas estatísticas que vão nortear as nossas políticas de combate a esse tipo de situação. Há um conjunto de atores estatais e privados que se unem para combater essa chaga do trabalho escravo", prosseguiu Paulo Renato Fernandes da Silva.

Segundo ele, estatísticas apontam que os segmentos mais comuns nos quais se encontra trabalho escravo são os da área rural, o de frigoríficos e o da construção civil. O ramo da moda não fica para trás.
No entanto, com a ascensão de práticas empresariais internas ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês), optar pelo caminho do crime de trabalho escravo é uma escolha que custa caro aos empreendedores.

"[A governança] Coloca em prática a questão da higidez dos seus resultados, porque hoje nenhum investidor coloca seu dinheiro em empresas que não têm o selo social, que não têm ESG. Essa ideia de que as empresas têm que manter a própria responsabilidade social é muito importante para a sociedade. Marcas que [usam trabalho escravo] acabam sendo objeto de reprimendas, de críticas, de boicotes pelos consumidores, o que me parece que é um caminho", afirmou o professor da FGV.

Silva afirma ainda que "a sociedade tem que despertar" e ter consciência de que marcas que se aproveitam disso não merecem ser líderes de mercado e seguir vendendo amplamente para as pessoas.

"Não adianta ficar reclamando da corrupção, do trabalho escravo quando se consome produtos oriundos do crime e de suas diversas modalidades. Nossas relações não podem ser mais pautadas pela lei do mais esperto, e sim pela eticidade. O fator primordial do nosso país hoje é a questão ética. Ela é transversal na sociedade brasileira, pois pega do rico ao pobre. O país não vai dar uma virada se não tiver um novo comportamento ético. É não ser partícipe de situações como essa de descumprimento de normas, de violação de direitos fundamentais das pessoas que fazem esses produtos. Pessoas que compram esses produtos são coniventes com essas práticas, nós não podemos aceitar isso e devemos reagir."

Arqueólogos trabalham dentro de quarto de escravos enocntrado na cidade de Pompeia - Sputnik Brasil, 1920, 07.11.2021
Quarto achado em cidade arrasada pelo Vesúvio revela escravidão em Pompeia (FOTOS, VÍDEO)
Já Ricardo Rezende, professor da UFRJ, diz que a organização não governamental dos EUA Free the Slaves estima que há no Brasil 27 milhões de pessoas em situação análoga à escravidão.

"No Brasil, desde 1995, temos mais de 50 mil pessoas resgatadas de regimes análogos à escravidão", acrescentou. "No entanto o número de pessoas resgatadas não se refere à totalidade das pessoas que possivelmente foram submetidas a tais condições. Para serem resgatadas, é preciso haver uma denúncia, uma fiscalização, uma ação do poder público. Grande parte dos casos de escravidão não acaba se tornando conhecida."

Ele aponta que os países com mais problemas de trabalho análogo à escravidão são Índia, Paquistão e alguns da África.
Em geral, segundo Rezende, países mais pobres e periféricos têm incidência maior de pessoas escravizadas.
Isso porque a fragilidade econômica faz parte desse universo, o que deixa a pessoa mais vulnerável à escravidão contemporânea.
Porém, lembra o professor, também há denuncias de escravização de pessoas nos EUA, na França, na Inglaterra.

"Mesmo em países onde, em princípio, o controle social seria maior e o patamar econômico de vida é mais elevado, também há casos de escravização. As vítimas predominam entre estrangeiros. Aqui no Brasil tivemos casos de escravização de estrangeiros chineses, congoleses e bolivianos. Neste caso, está ligada à migração por necessidade econômica ou por ameaça de guerra e perseguições políticas", acrescentou.

Afinal, a grande questão: como se combate a escravidão no século XXI?
Rezende aponta que isso começa por meio de medidas preventivas, com melhor distribuição de renda, reforma agrária, mais leis internacionais para regular o trabalho e um controle das cadeias de produção na linha de resgate e de apoio, "porque quem foi resgatado precisa ter apoio psicológico, econômico, profissional. As medidas preventivas são muito complexas, significam uma mudança estrutural, e isso não é simples".
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