Panorama internacional

Analista: Brasil tem vocação para liderar integração sul-americana, mas tem de arcar com ônus

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialista aponta que a liderança hemisférica sub-regional é natural para o Brasil, mas Lula terá de estreitar parcerias regionais para retomar espaço perdido.
Sputnik
Uma das principais agendas da política internacional brasileira do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é a retomada da posição do Brasil como líder regional entre países latino-americanos e sul-americanos.
A proposta é reviver os laços diplomáticos e as parcerias econômicas com países vizinhos que marcaram os dois mandatos anteriores do presidente.
Porém, desta vez, o desafio será significativo, uma vez que a conjuntura da geopolítica global encontrada pelo novo governo é bem diferente do momento vivenciado entre 2003 e 2011, quando a China crescia em ritmo acelerado e o boom das commodities se tornou um dos motores propulsores da economia brasileira.
Somado a isso, Lula assume com um orçamento apertado, aprovado após uma intensa discussão no Congresso Nacional, a Argentina, principal parceira comercial do Brasil na América do Sul, atravessa forte turbulência política e econômica e a China suplantou a posição brasileira como principal parceira comercial em muitos países vizinhos.
Para entender como e se será possível para o Brasil se reposicionar como líder regional e retomar a liderança econômica na América Latina, a Sputnik Brasil conversou com Paulo Velasco, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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Paulo Velasco destaca que essa agenda de retomada de liderança é algo que, de fato, foi observado já no primeiro mês de mandato de Lula.
"Lula aponta para isso, para um Brasil que volta a estar atento ao entorno regional, empenhado em espaços e fóruns voltados para a integração e para uma melhor coordenação de países latino-americanos e sul-americanos."
Ele acrescenta que, nesse empenho para retomar o espaço perdido, é crucial para o país tentar ampliar o fluxo comercial, lançando mão de mecanismos como crédito aos exportadores, especialmente para a Argentina.

"Pegando os dados mais recentes, o Brasil tem um volume de comércio ainda muito inferior ao que tínhamos no início da década passada. Embora agora, pelos dados do ano passado, tenhamos voltado a nos aproximar dos US$ 30 bilhões [cerca de R$ 150 bilhões] decorrentes de comércio com a Argentina, em 2011 esse comércio era de quase US$ 40 bilhões [cerca de R$ 200 bilhões]."

Velasco destaca que a Argentina tem uma grande importância para o Brasil e que interessa ao governo brasileiro ampliar as vendas para o país vizinho. Ele aponta que "além de ser o terceiro maior parceiro comercial do Brasil no mundo, a Argentina é um mercado muito qualificado para o Brasil".

"É um mercado muito qualificado para o Brasil porque é para onde vendemos manufaturas de média, alta e altíssima intensidade tecnológica, produtos que a gente não vende ao mercado europeu, norte-americano ou chinês, muitos automóveis, autopeças, eletroeletrônicos. Então é bom investir nesse mercado."

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Sobre a possível liderança na retomada econômica regional, Velasco ressalta ser evidente que, por conta da falta de recursos, o Brasil não terá o mesmo fôlego para essa empreitada, como teve no início dos anos 2000.
Ele cita como exemplo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), "que nos dois primeiros governos Lula teve um papel importante de financiador de projetos de infraestrutura na América Latina e na África".
"Isso, claro, agora não deve acontecer, até pelos escândalos de corrupção. O fôlego [para financiamentos] certamente não será o mesmo. Teremos mais dificuldades para replicar estratégias que deram muito certo no passado", destaca Velasco.

Brasil precisa arcar com o ônus de sua vocação para líder regional

Para Velasco, a liderança hemisférica sub-regional é natural para o Brasil. Ele explica que o Brasil está vocacionado para isso, "embora os diplomatas muitas vezes evitem o termo 'liderança' por entenderem que ele pode criar constrangimentos perante os vizinhos".
"Mas o Brasil é o único país da região que tem condições materiais de exercer uma liderança ou aquilo que muitos chamam de papel de 'paymaster'. O Brasil pode ser o paymaster de uma integração sul-americana e latino-americana", diz o professor.
No entanto ele destaca que toda liderança traz consigo ônus já previstos para aqueles que assumem a posição.

"Não é trivial, muitas vezes o paymaster tem de arcar até com alguns prejuízos para ajudar vizinhos, para tentar alavancar o crescimento e as exportações de vizinhos, financiar exportações, tentar equilibrar um pouco o comércio com os vizinhos, fazendo com que eles vendam mais ao mercado brasileiro. São variáveis importantes que cabem a um paymaster."

Velasco acrescenta que esse empenho em financiar projetos de coesão social e de infraestrutura em países vizinhos foi visto no fim dos anos 2000, no segundo mandato de Lula, por meio do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem, no acrônimo em espanhol), que teve seu ápice na época.
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Ele também destaca que, mesmo tendo de lidar com os ônus, liderar a integração e a retomada econômica regional tem ganhos e reverbera na imagem do Brasil no exterior.
"O Brasil é visto no mundo como representante da América Latina. E, claro, tem de assumir as responsabilidades atinentes a esse papel", diz Velasco, acrescentando "que existem boas oportunidades que derivam desse papel, mas que exigem uma certa capacidade de assumir responsabilidades".
Velasco destaca ainda que o Brasil terá de revelar essa capacidade de assumir responsabilidades "em um momento muito mais desafiador para a América Latina".
"Uma América Latina que se empobreceu na última década, em que as desigualdades avançaram, a pobreza, a fome, as desigualdades de um modo geral. Os indicadores sociais pioraram muito, é uma década perdida."
Ele acrescenta que não se trata de uma crise que afeta apenas os países vizinhos, mas sim um momento adverso global.
"A economia mundial vive um cenário de desafio. A guerra na Ucrânia, uma inflação global, algumas partes do mundo desenvolvido, como a Europa, à beira de uma recessão. É um quadro que se mostra muito dramático e que impacta, claro, nas possibilidades do Brasil."

Vácuo deixado pelo Brasil nos últimos anos contribuiu para o avanço da China

Segundo Velasco, além da questão econômica, outro fator que torna o momento atual mais desafiador para o Brasil é o aumento da presença da China nas Américas do Sul e Latina.
Ele explica que, nos últimos 20 anos, "a China se tornou o maior ou o segundo maior parceiro comercial de praticamente toda a América Latina, muitas vezes deslocando mercadorias brasileiras".
"A China vende muito o que nós vendemos também, automóveis, autopeças, eletroeletrônicos, produtos de média, alta e altíssima intensidade tecnológica, à região. O Brasil, evidentemente, tem na China seu melhor parceiro comercial desde 2009, é um grande financiador no Brasil, um grande investidor no Brasil. Mas também é um desafio. No entorno latino-americano, a China tem deslocado posições brasileiras e concorre com nossas empresas, com nossas mercadorias."
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Segundo Velasco, o Brasil tem uma desvantagem na concorrência com a China, mas há uma maneira de contornar essa situação, reforçando acordos e parcerias que a China não tem na região.

"Por ser membro da ALADI [Associação Latino-Americana de Integração], o Brasil tem uma série de acordos de complementação econômica com vizinhos latino-americanos que permitem justamente um tratamento vantajoso e podem ser ampliados e aprofundados. O próprio Mercosul é um acordo no âmbito da ALADI. O Brasil tem que ampliar os entendimentos com os sócios do Mercosul para obter ainda mais vantagens que a China não tem, evidentemente, porque não é membro do Mercosul e não é membro da ALADI."

Moeda única para a América do Sul ainda é uma utopia, mas reforça laços

Por fim, com relação à proposta para a criação de uma moeda única para a América do Sul, que vem sendo debatida pelo novo governo, Velasco aponta que esse é um projeto antigo, que aparece de maneira intermitente. Segundo ele, é uma ideia muito remota, considerando as condições atuais, mas que periodicamente volta à tona.

"Nos anos 90 já se falava disso, poucos anos depois do lançamento do Mercosul alguns analistas já aventavam o lançamento de uma moeda comum. Houve alguns avanços, nos anos 2000, não em termos de moeda, mas, por exemplo, Brasil e Argentina inauguraram um sistema de pagamentos em moeda local, que permite ao Brasil comprar da Argentina pagando em real e à Argentina comprar do Brasil pagando em peso, evitando as operações cambiais que sempre representam custos para os exportadores."

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Velasco aponta que, de fato, "a criação de uma moeda única facilitaria o comércio no continente e o intercâmbio de mercadorias e serviços".
"Mas é um baita desafio. A gente vê isso na Europa. Uma moeda comum, para ser saudável, pressupõe uma política fiscal comum. Coisa que nem a Europa conseguiu. Tem de haver uma convergência de indicadores macroeconômicos, inflação, dívida pública, déficit fiscal, taxa de juros. E isso é algo completamente irrealista, para não dizer utópico, olhando para o momento atual do Mercosul. A gente não consegue nem acertar uma redução mais contundente da tarifa externa comum, que dirá acertar uma moeda única", diz Velasco.
Porém ele finaliza ressaltando que, apesar de ser um projeto distante de se tornar realidade, a ideia contribui para fortalecer a lógica da integração.

"Por mais utópico que seja esse objetivo, ele acaba tendo um papel agregador. Eu sempre comento que os objetivos, por mais distantes que pareçam, servem para criar maior convergência, estimular uma maior unidade, agregar os atores. Temos uma meta distante a ser alcançada, então vamos dar as mãos. Cria maior unidade, maior convergência, é um fator agregador. É muito para isso que serve a ideia da moeda única. Porque é um objetivo, em termos concretos, bem distante."

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