Mais uma vez ficou demonstrado que Rússia e China possuem um alto grau de concordância em posições-chave envolvendo as relações internacionais. Na própria declaração conjunta emitida após o encontro, Lavrov e Qin manifestaram sua oposição à "imposição de abordagens unilaterais" pelos países ocidentais no tocante ao conflito na Ucrânia, assim como a inadmissibilidade do uso de chantagens (seja por sanções) e ameaças políticas (seja por tentativas de isolamento diplomático) que prejudiquem o processo de "democratização" das relações internacionais.
No mais, para além da oposição à "imposição de abordagens unilaterais" para a resolução de conflitos, é preciso observar que a consolidação da posição sino-russa no sistema internacional exerce uma função estrutural bastante importante: a de contrapeso às aspirações hegemônicas dos Estados Unidos e de seus parceiros ocidentais em assuntos globais. Vale lembrar que, durante a década de 1990, quando a China não se encontrava ainda suficientemente confiante e quando a Rússia vivenciava um dos períodos mais turbulentos de toda a sua história, a predominância cultural, militar e econômica dos Estados Unidos no sistema levou alguns analistas a afirmarem que era chegado o "Fim da História".
Esse tipo de interpretação continuou bastante popular até o começo dos anos 2000, quando se discutia nos meios acadêmicos do Ocidente a chamada Teoria da Estabilidade Hegemônica, que preconizava a necessidade da existência de um poder hegemônico (ou hegemon) incontestável como forma de estabilizar o sistema internacional. Não sem razão, à época esse poder hegemônico era identificado na figura dos próprios Estados Unidos, que atuavam de forma conjunta com os países da Europa Ocidental membros da OTAN como uma espécie de "policial do mundo". Diante desse contexto, a tal estabilidade sistêmica não necessariamente resultaria das decisões justas e ponderadas do hegemon, mas sim como o resultado objetivo de sua esmagadora superioridade militar e econômica, que lhe daria condições de impor suas visões e políticas ao resto do mundo, sem maiores resistências.
Ora, como nenhum outro Estado ou grupo de Estados nessa configuração seria capaz de se opor ao hegemon, logo todos deveriam se acomodar com a posição que lhes fora designada pelos "poderes estabelecidos". Até o começo dos anos 2000 talvez fizesse sentido realmente acreditar que esse seria o estado natural das coisas.
Porém, a subsequente ascensão econômica e política da China, assim como a recuperação russa no século XXI, colocaram um fim não somente às discussões em torno da pseudo "estabilidade hegemônica" como demonstraram que essa tal estabilidade nunca sequer existiu.
Ações desastrosas por parte de Washington no Oriente Médio, Norte da África, Leste Europeu, Ásia Central e demais partes do globo, mudanças de regime pela força, crises migratórias, instabilidade política e o empobrecimento de países e regiões inteiras colocaram em xeque justamente as "abordagens unilaterais" levadas a cabo pelo poder hegemônico.
Por outro lado, o que Rússia e China demonstraram a partir de sua cooperação política ao longo dos anos 2000 é que: na qualidade de grandes potências ambas enxergavam novamente a possibilidade de atuarem de forma propositiva para a construção de uma ordem internacional mais justa e multifacetada. No teor de diversas declarações conjuntas, Moscou e Pequim manifestaram sua posição de contrapeso estratégico ao mundo unipolar e sua indisposição comum frente à hegemonia americana, que contava com o apoio tácito de seus parceiros europeus. Sendo assim, Rússia e China acabaram se tornando "alvos" das autoridades em Washington, que passaram a utilizar métodos de pressão política por meio da aplicação de sanções econômicas (no caso da Rússia) e até mesmo de guerras comerciais (no caso da China), no intuito de prejudicar suas econômicas e de punir esses países por conduzirem uma política externa independente.
É nesse contexto que devemos avaliar a preocupação dos Estados Unidos e do Ocidente de um modo geral pela parceria estratégica entre Moscou e Pequim nos últimos anos. Se, por um lado, a Rússia representa uma ameaça ao predomínio militar estadunidense por ser o país com maior número de ogivas nucleares do planeta, por outro, a China representa uma ameaça ao predomínio econômico estadunidense por ocupar a posição de segunda maior economia mundial em PIB nominal e a primeira economia do mundo por PIB em paridade de poder de compra. Não sem razão, documentos de Estado da Casa Branca entendem que a parceria estratégica estabelecida entre Rússia e China são um desafio ao poder, à influência e aos interesses americanos no mundo, incluindo – como não poderia deixar de ser – seus interesses em torno do conflito na Ucrânia.
Note-se que Washington é de longe o principal apoiador financeiro e militar de Kiev, o que constitui um fator de prolongamento para a crise. Enquanto isso, a Rússia continua demonstrando a intenção de retomar as negociações com os ucranianos – apesar da recusa por parte de Kiev – ao passo que a China chegou inclusive a divulgar recentemente um documento com propostas para um acordo de paz.
Em suma, a cooperação sino-russa demonstrada no encontro entre Lavrov e Qin diz respeito a um movimento mais profundo e estruturalmente mais importante para as relações internacionais em nosso século. Trata-se da consolidação do mundo "multipolar" em oposição justamente às "abordagens unilaterais" do poder hegemônico, antes incontestado. No fim das contas, a consolidação dessa parceria entre Rússia e China poderá trazer benefícios políticos para outros países e regiões do mundo por uma razão bem simples.
Ora, admitir a existência de uma ordem mundial multipolar e multifacetada significa admitir que cada sociedade exerça o direito de escolher sua própria organização política, econômica e social; ou seja, a possibilidade de escolher o seu próprio destino. Representa a anulação do "Fim da História" em prol de sua "continuidade", que deverá ser escrita pelas mãos das demais nações e povos do planeta.
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