É preciso frisar que o pedido de adesão das anteriormente neutras Suécia e Finlândia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) se deu após o início do conflito na Ucrânia baseando-se num pressuposto fundamental: a de que a Rússia representa um "perigo para toda a Europa" e de que Putin teria supostamente a intenção de avançar sobre outras partes do continente.
Essa narrativa serve aos países europeus não somente como fator de justificação para o envio cada vez maior de apoio financeiro e de armas a Kiev (no desejado intuito de aplicar uma derrota às forças russas no campo de batalha) como também para a continuação da expansão da OTAN, que agora não esconde mais aquela que sempre foi sua intenção principal desde sua criação: a de se opor à Rússia.
É realmente bastante revelador nesse sentido que bandeiras da Ucrânia tenham sido hasteadas em lugares públicos de importantes cidades finlandesas como Helsinque depois de fevereiro de 2022, assim como em demais Estados do entorno russo. Tratava-se de uma mensagem clara dos países europeus: a de que a Rússia sempre foi o grande "outro" para a Europa, a razão da afirmação de uma identidade europeia supostamente "iluminada" e superior.
Percebe-se então a utilidade de se exagerar a "ameaça russa", caracterizando o país como um ator irracional – um país não normal – que de tempos em tempos culmina por demonstrar as suas raízes "bárbaras" e incivilizadas, em contraste com o modelo racionalista, humanista e aparentemente universalista dos valores europeus.
Revive-se assim aquela imagem estereotipada da Rússia, como um Estado que ficou para trás no tempo, um Estado que o Ocidente acabou perdendo durante os anos 2000 e que não mais faz parte dos países que rumam em direção ao "progresso". "Progresso" esse, vale lembrar, definido por uma visão estritamente eurocêntrica da história e altamente discriminatória do restante do mundo.
Não por acaso, os países europeus enxergam com suspeita e apreensão a ascensão de Estados não ocidentais no sistema internacional, que, em sua interpretação, têm o interesse de derrubar a ordem mundial existente, fundamentada no privilégio da própria Europa em instituições de tomada de decisão global.
A partir dessa perspectiva, é fácil entender por que o Ocidente, por exemplo, também exagera a ameaça da China, por representar um país asiático considerado estranho do ponto de vista cultural e civilizacional. Por conta disso é que Rússia e China são frequentemente apresentados como potências revisionistas que visam reescrever as atuais regras das relações internacionais em benefício próprio.
Voltando à Rússia, muito se fala que o país se tornou uma ameaça à estabilidade e às fronteiras dos países da Europa em tempos recentes. Esquece-se, por sua vez, de mencionar que no decorrer da história a Rússia foi justamente o principal garantidor da existência e da independência dos países europeus contra ameaças de dominação continental.
No século XIX foi o Império Russo que atuou como ator primordial na derrota da pós-revolucionária e "iluminada" França napoleônica, que havia subjugado a maior parte dos países europeus de sua época. Ainda assim, mesmo após essa contribuição russa para a libertação da Europa, os líderes das potências ocidentais viram na Rússia uma ameaça a ser batida, temerosos pelo tamanho de seu território e de suas forças militares, que faziam com que parecessem pequenos os recursos combinados de todo o resto do continente.
Apesar do Império Russo nunca ter demonstrado aspirações de dominação continental, os europeus enxergavam ser necessário frear a qualquer custo o aumento posterior da influência internacional da Rússia, justificando a união da França e da Inglaterra com o Império Otomano para a luta contra os russos na Guerra da Crimeia (1853-1856). Em resumo: a Rússia havia libertado a Europa poucas décadas antes e os europeus pagaram à Rússia com uma traição.
No século XX, novamente a existência e a independência dos países europeus se deu às custas do sangue russo e do sangue dos povos que compunham as 15 repúblicas da União Soviética. Ora, a Europa que vemos hoje, assim como suas fronteiras atuais, se deve à contribuição das mais de 25 milhões de vidas soviéticas que foram sacrificadas para a derrota da Alemanha nazista, que fora a maior máquina militar de toda a história humana.
Sim, o destino e o futuro da Europa não foram decididos pelo Dia D (por mais importante que essa batalha tenha sido durante a fase final da guerra), mas sim nas ruas, nas casas e nas ruínas de Stalingrado.
Por fim, com a dissolução da URSS em 1991, por mais que Moscou tenha demonstrado mais uma vez sua boa vontade para com a Europa, retirando as tropas soviéticas do Leste Europeu naquela que pode ser considerada a mais "dramática campanha de desmilitarização em tempos de paz" de toda a história, não demoraria muito para que a Rússia fosse recompensada com uma nova traição.
De nada valeram as promessas feitas a Mikhail Gorbachev, último secretário-geral da União Soviética, de que "a OTAN não se moveria nem uma polegada para o leste". De nada valeram os esforços da Rússia para ser aceita na "família dos países ocidentais" durante os anos 1990, às custas de sua própria estabilidade econômica e social.
Nada disso teve valor algum. A Europa nunca teve a intenção de honrar suas palavras nem suas promessas. Pelo contrário, sempre se mostrou receptiva ao processo de ampliação da OTAN (sob direção americana) mesmo em detrimento da estabilidade estratégica no continente.
A entrada da Finlândia na OTAN, portanto, apenas lançou as máscaras ao chão.
Revelou, como previra Putin ainda em 2007 na Conferência de Munique, que a ampliação da Aliança nada tinha a ver com sua modernização ou com a defesa da democracia no continente. Tratava-se, como sempre foi, de uma provocação aberta e descabida contra a Rússia.
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