Durante sabatina no Senado, o chanceler brasileiro Mauro Vieira fez críticas contundentes à União Europeia (UE), revelando ceticismo quanto a um rápido avanço do acordo Mercosul-UE.
Discutido há mais de 20 anos, as negociações políticas do acordo foram encerradas em 2019. No entanto, a UE apresentou novo documento – chamado "side letter" no jargão diplomático – com exigências ambientais que vão muito além das normas internacionais contemporâneas.
"A UE apresentou o documento adicional, chamado em inglês de 'side letter', e esse documento é extremamente duro e difícil, criando uma série de barreiras e possibilidades inclusive de retaliação, de sanções, com base em uma legislação ambiental europeia extremamente rígida e complexa de verificação. Isso pode ter prejuízos enormes", declarou o chanceler Vieira durante a sabatina, no dia 11 de maio.
Segundo o chanceler, as exigências do documento levaram o Brasil a reavaliar o acordo com os europeus.
De acordo com a professora de Relações Internacionais da Universidade Cruzeiro do Sul e doutoranda do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) Flavia Loss de Araujo, o documento demanda do Brasil a aplicação de normas extremamente duras, "apesar do país já possuir uma das legislações internacionais mais avançadas do mundo e ser membro de regimes internacionais de meio ambiente".
"Geralmente o Brasil não trabalha com sanções ambientais, mas sim incentivos para cumprimento das legislações. Eles querem que tenhamos obrigações a mais no setor de meio ambiente e, caso não cumpramos, soframos sanções comerciais. Isso pode ser muito prejudicial", disse Loss de Araujo à Sputnik Brasil. "De fato, é um documento leonino."
A especialista lamenta que o trato das questões ambientais durante o governo Bolsonaro tenha levado a UE a capitalizar no tema para fazer exigências adicionais do Brasil.
"Essa lentidão para a assinatura do tratado é um legado negativo da gestão Bolsonaro para a política externa e comercial brasileira", considera Loss de Araujo. "Por outro lado, lógico que setores protecionistas da UE, como o setor agricultor de países como França e Irlanda, estão se aproveitando disso."
O presidente francês, Emmanuel Macron, fala com a mídia
© Sputnik / Stringer
Segundo ela, a Europa coloca exigências que o Brasil teria dificuldades em cumprir para poder aumentar tarifas sobre produtos agrícolas mercosulinos, "negando o nosso acesso ao mercado europeu, mesmo com o acordo em vigor".
Ética nas negociações
As novas exigências europeias também causam estranhamento por terem sido impostas após o fechamento das negociações políticas entre as partes, em 2019. Araujo explica, no entanto, que a prática é comum.
"Juridicamente é legítimo apresentar documentos adicionais após o fim das negociações. Mas mostra o quanto a União Europeia costuma ser intransigente ao negociar e costuma colocar os seus valores e regras nos outros países, principalmente nos países em desenvolvimento", considerou Loss de Araujo.
Segundo ela, os europeus também apresentaram exigências ambientais durante negociações de acordo de livre comércio com o Canadá, "mas elas não eram tão duras".
Primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, após eleições parlamentares no país, 21 de setembro de 2021
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"Quando [os europeus] negociam com países que foram ex-colônias eles são, sim, mais duros. E essas exigências mostram isso", acredita Loss de Araujo. "Temos aqui um questionamento ético, de buscar uma negociação entre pares, e não entre países ricos e países em desenvolvimento."
Perspectivas
Durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Portugal, em abril deste ano, autoridades do governo brasileiro declararam a intenção de assinar o acordo Mercosul-UE ainda no primeiro semestre de 2023, reportou o portal Poder 360.
O Palácio do Planalto tem a expectativa que a presidência espanhola do Conselho da União Europeia facilite a negociação do acordo. De acordo com Loss de Araujo, existe vontade de diversos setores econômicos europeus em selar acordos com novos fornecedores internacionais.
"Do outro lado, nossos parceiros no Mercosul também querem o acordo", declarou Loss de Araujo. "A conjuntura regional é positiva para que o acordo saia."
Durante a sabatina no Senado, o chanceler Mauro Vieira anunciou que o Mercosul apresentará uma contraproposta aos europeus.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, posa para foto ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva após a posse do mandatário brasileiro. Brasília, Brasil, 1º de janeiro de 2023
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"O governo está em fase de finalização de uma posição comum. Já temos conversado muito com os outros três sócios do Mercosul", disse Vieira aos senadores. "Estamos consensuando uma posição para apresentar uma contraproposta à União Europeia."
Porém, mesmo que o governo brasileiro consiga avançar, a possibilidade de assinatura do acordo no primeiro semestre de 2023 é baixa. Loss de Araujo lembra que "o acordo ainda teria que passar pelos 27 parlamentos dos países da UE, cada um deles com a possibilidade de barrar o acordo como um todo".
"O caminho pela frente é longo. Não acho que no curto prazo esse acordo entrará em vigor", lamentou a especialista.
No dia 11 de maio, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, compareceu à sessão especial da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal. Na ocasião, o ministro fez declarações sobre novas exigências europeias para a assinatura do acordo de livre comércio Mercosul-UE, em negociação há mais de 20 anos.