Panorama internacional

Uma proposta 'recusável': os problemas do acordo Mercosul-União Europeia

Como se sabe, embora o acordo Mercosul-União Europeia tenha sido alcançado em 2019 depois de praticamente 20 anos de negociações, até o presente momento o documento ainda não foi ratificado pelos principais governos dos dois blocos.
Sputnik
Isso porque existem algumas preocupações e problemas referentes ao acordo, colocando em choque as expectativas de sul-americanos e europeus a respeito de seu funcionamento.
O primeiro deles trata-se da questão ambiental. Desde 2019, um dos principais pontos de preocupação por parte dos europeus foi a falta de compromissos sólidos do governo brasileiro em relação ao desmatamento florestal e à sua luta contra as mudanças climáticas.
Há tempos, as críticas europeias sobre a gestão brasileira da Amazônia, especialmente durante a administração Bolsonaro, suscitaram bastante desconforto entre as partes. Lula (que inclusive exercerá o papel de presidente do Mercosul), por sua vez, tem criticado recentemente o parlamento francês, que objetiva impedir a ratificação do acordo entre os blocos por inferir que o Brasil não tem condições de cumprir as proposições do Acordo de Paris, referentes ao tratamento da questão ambiental.
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Em resposta a essas acusações, o mandatário brasileiro indicou que nenhum país europeu vem cumprindo as metas ambientais mais do que o Brasil.
Não obstante, em seu discurso diante da Torre Eiffel no âmbito do evento Power Our Planet ocorrido em Paris, Lula mencionou que não foram exatamente os povos africanos ou latino-americanos que poluíram o mundo, mas sim que os países que mais poluíram o mundo durante os últimos 200 anos foram aqueles que fizeram a Revolução Industrial.
Essa foi uma alusão direta justamente aos Estados europeus avançados, incluindo Reino Unido, França, Alemanha, Itália, entre outros, que gostam de apontar o dedo para o resto do mundo, mas que se esquecem de olhar para seus próprios erros e problemas históricos quanto à gestão da questão ambiental.
Em partes do Sul Global, vale lembrar, algumas ex-colônias argumentam que os Estados ricos têm justamente a obrigação moral de ajudar os países menos privilegiados do sistema, uma vez que sua riqueza industrial se deveu, em alguma medida, à exploração dos recursos naturais extraídos do Terceiro Mundo, prejudicando justamente o meio ambiente.
Além disso, os europeus, como se sabe, são exímios em esconder suas intenções de relativizar a soberania de outros países, criticando suas políticas domésticas e externas, não somente quando se trata de políticas ambientais, mas também em demais áreas nas quais seus interesses estejam envolvidos.
Seja como for, a abordagem do Brasil perante a hipocrisia demonstrada pela União Europeia exercerá um importante papel na decisão do bloco de ratificar ou não o acordo. Vale lembrar que a própria institucionalização do Mercosul (que conta hoje com Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) ainda em 1991 foi fruto do peso econômico e político brasileiro, que desde então vem empreendendo esforços para uma maior integração regional com seus vizinhos.
Originalmente, o Mercosul se destinava a proporcionar: a livre circulação de bens e serviços entre os Estados, o estabelecimento de uma política comercial e tarifária externa frente a terceiros países e a coordenação de posições comuns em fóruns econômicos regionais e internacionais. Desde então o Mercosul tem reafirmado o papel do bloco como um espaço cultural único e como um promotor da multipolaridade nas relações internacionais.
Ao mesmo tempo, a criação do bloco também demonstra a intenção do governo brasileiro de priorizar o multilateralismo em sua política regional e de atuar em conjunto com os demais países sul-americanos em defesa de seus interesses nacionais no plano global.
Ainda sobre interesses nacionais, o setor agrícola e agropecuário, um dos principais segmentos econômicos dos países sul-americanos, enxerga determinados problemas quanto à ratificação do acordo por conta do protecionismo europeu com relação às exportações de carnes e outros produtos alimentícios oriundos do Mercosul. Não obstante, a União Europeia também critica determinadas práticas de produção e padrões sanitários nos países do Mercosul, numa clara intenção de impor barreiras não tarifárias ao comércio bilateral. Deputados franceses, por exemplo, chegaram a levantar a exigência de que os agricultores sul-americanos utilizem as mesmas regras ambientais e sanitárias presentes na Europa, o que diminuiria sua competitividade internacional.
Outra questão espinhosa entre os dois blocos diz respeito às exigências europeias de proteção às suas empresas e patentes farmacêuticas, o que poderia, na prática, dificultar o acesso a medicamentos genéricos mais acessíveis nos países do Mercosul. Essa tem sido uma problemática controversa, visto que as populações nos países do Sul Global (incluindo na América do Sul) dependem da obtenção de remédios mais baratos para o tratamento de doenças.
No mais, outra questão de natureza bastante polêmica envolvendo o acordo é a assimetria econômica entre os dois blocos. Dada a intenção de promover uma abertura econômica abrangente, o acordo poderia beneficiar principalmente as economias industriais mais fortes da União Europeia, prejudicando o processo de reindustrialização brasileira, por exemplo, e fixando o papel dos países do Mercosul como meros exportadores de commodities.
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Afinal, o próprio conceito de livre comércio tem como base as leis de vantagem comparativa entre os Estados, justificando uma lógica de divisão internacional do trabalho desfavorável aos países de economia primária. É importante ressaltar que esses são problemas importantes para os países sul-americanos, que frequentemente estiveram preocupados quanto à sua inserção econômica no mundo.
Por fim, outro dos pontos criticados pelo Brasil com respeito ao acordo trata-se das compras governamentais, nas quais a União Europeia exige que empresas estrangeiras recebam o mesmo tratamento de empresas brasileiras em procedimentos de licitação pública.
Como disse Lula em entrevista recente, "eles [os europeus] querem que o governo brasileiro compre as coisas estrangeiras ao invés das coisas brasileiras", acrescentando que o Brasil não pode abrir mão das compras governamentais por representarem a única "oportunidade das pequenas e médias empresas sobreviverem" no país.
Em vista de todas essas questões, torna-se claro que os europeus não têm dado muita atenção às preocupações legítimas dos sul-americanos quanto às consequências econômicas e políticas da ratificação do acordo Mercosul-União Europeia. Enquanto se mantiver essa condição, portanto, o documento que visava aproximar os dois blocos continuará se mostrando uma proposta "recusável".
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.
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