Panorama internacional

Diante do inimigo comum: os novos contornos políticos da liderança sino-russa na Eurásia

As relações de parceria estratégica entre Rússia e China nunca estiveram em melhor momento. Enquanto o Ocidente prossegue sua política de sanções contra Moscou e suas tentativas de conter a ascensão de Pequim no sistema internacional, ambas as potências têm exercido uma verdadeira liderança coletiva no continente eurasiático.
Sputnik
Tal aproximação entre os dois gigantes não surpreende. Afinal, a grande extensão de suas fronteiras terrestres e a presença de uma longa história de cooperação política são fatores mais do que suficientes para que China e Rússia desempenhem um papel fundamental no novo jogo de forças global.
No âmbito econômico, vemos por exemplo que os países que compõem a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) já iniciaram um movimento no sentido da diminuição do papel do dólar em suas transações comerciais.
É nesse contexto que, conforme assinalado por Vladimir Putin em reunião recente com os chefes de Estado da OCX, cerca de 40% das exportações russas em 2022 para os países do bloco foram realizadas em rublos.
Esse cenário se deu sobretudo pela contribuição das relações comerciais entre Rússia e China, dado que mais de 80% de suas transações já são feitas em suas moedas locais.
O vice-chefe do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, e o presidente chinês, Xi Jinping, apertam as mãos durante seu encontro em Pequim, 21 de dezembro de 2022
Nesse ínterim, Moscou tem cada vez mais alavancado a venda de seus hidrocarbonetos para potências asiáticas como China e Índia, redirecionando para o Oriente parte de suas commodities antes negociadas com a Europa.
Sobretudo após a eclosão do conflito na Ucrânia em 2022, a Rússia viu as sanções ocidentais contra o país se intensificarem, motivando as indústrias do país e a própria economia russa a fazerem uma "virada" definitiva para o Leste.
Diante desse novo contexto, Moscou e Pequim almejam atingir a marca de US$ 200 bilhões (um pouco mais de R$ 975 bilhões) em seu comércio bilateral anual até o ano de 2024. Para efeito de comparação, em 2021 as trocas comerciais entre Rússia e China somaram cerca de US$ 138 bilhões (R$ 672,9 bilhões).
Ainda em se tratando de comércio, a proposta (que data de 2012) de construção de um Novo Corredor de Grãos Terrestre, ligando a China aos países da União Econômica Eurasiática, ganhou ainda mais força nos últimos tempos.
Pessoas se preparam para receber a delegação chinesa que chega ao Hotel Soluxe em Moscou, na Rússia. O presidente chinês, Xi Jinping, chegou a Moscou no início do dia para uma visita de Estado de três dias a convite do presidente russo, Vladimir Putin, 20 de março de 2023
Dada a solidariedade econômica sino-russa, esforços já têm sido empreendidos para conectar o mercado chinês aos grandes exportadores de grãos russos, a fim de reduzir a dependência da China das importações norte-americanas e da Austrália.
Em troca, Pequim vem expandindo suas exportações de maquinários e de tecnologia para a Rússia, ajudando o país a escapar dos efeitos negativos das sanções ocidentais. Além do mais, outra das principais rotas de integração entre os dois países na Eurásia tem sido a questão energética.
Símbolo dessa integração foi a inauguração do gasoduto Power of Siberia (Poder da Sibéria) em 2019, supervisionado pela Gazprom e pela China National Petroleum Corporation (CNPC, na sigla em inglês), fornecendo cerca de 38 bilhões de m³ de gás russo anualmente à China.
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Gazprom quebra recorde de fornecimento de gás para a China através do gasoduto Força da Sibéria
Uma extensão para o gasoduto já se encontra nos planos, cuja construção é prometida para ter início em 2024, redirecionando a Pequim parte do gás que a Rússia anteriormente vendia à Europa, tornando-se um substituto para o Nord Stream.
Se tudo correr conforme o planejado, até 2030 as exportações de gás russo para a China atingirão 98 bilhões de m³, constituindo um verdadeiro marco geoeconômico no continente eurasiático.
Não obstante, essa parceria entre Rússia e China também tem gerado resultados na Ásia Central. Ano após ano, por exemplo, têm aumentado as exportações da região para o mercado chinês, enquanto a China tem investido em infraestrutura energética e de transportes nos países centro-asiáticos.
Como resultado, o Cazaquistão e o Turcomenistão se tornaram importantes fornecedores de gás para a China. A título de exemplo, em 2022 o valor combinado do comércio chinês com esses dois países chegou à casa dos US$ 100 bilhões.
O presidente chinês Xi Jinping é recebido pelo comandante do Kremlin de Moscou, Sergei Udovenko, antes de uma reunião com o presidente russo, Vladimir Putin, no Kremlin de Moscou, na Rússia, 29 de março de 2023
Ao mesmo tempo, a Rússia, por meio da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, tem oferecido segurança e "estabilidade" política aos governos centro-asiáticos, ancorada em seu poderio militar predominante e na existência de um mecanismo de segurança coletiva regional.
Por conta dessa inteiração complementar na Ásia Central, Rússia e China têm desempenhado papel fundamental no fortalecimento do espaço eurasiático como um polo de poder independente nas relações internacionais.
Já no plano geopolítico, russos e chineses entendem que não podem mais ignorar as alianças dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico e as políticas americanas de expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Europa, o que demonstra uma tentativa clara de "cerco" militar à Eurásia.
Iniciativas como o QUAD (Diálogo Quadrilateral de Segurança entre Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália), retomado em 2017, e a AUKUS (aliança militar formada por Austrália, Estados Unidos e o Reino Unido) são movimentos geopolíticos evidentes de contenção à China no Leste Asiático.
Enquanto isso, a ampliação da Aliança Atlântica em solo europeu no contexto pós-Guerra Fria trata-se de uma provocação aberta contra a Rússia no espaço pós-soviético. Ora, o antigo plano da OTAN de atrair a Ucrânia (assim como a Geórgia) para o seu quadro de membros visava utilizar os países vizinhos à Rússia como "plataformas" para minar sua segurança e sua posição regional.
Já o programa em curso para armar a Austrália com submarinos movidos a energia nuclear visa ostensivamente provocar a China. Foram essas políticas ocidentais, portanto, que serviram de impulso para uma aproximação ainda mais sólida entre Rússia e China na Eurásia diante do "inimigo comum".
O presidente chinês Xi Jinping e o presidente russo Vladimir Putin participam de uma reunião no Kremlin em Moscou, na Rússia, 23 de março e 2023
No final das contas, é preciso lembrar também que no começo desse ano Xi Jinping realizou uma importante visita de Estado à Rússia, demonstrando solidariedade ao presidente Vladimir Putin pouco tempo depois do mandatário russo ter sofrido uma acusação insidiosa por parte do Tribunal Penal Internacional.
Com efeito, a presença de Xi em Moscou apenas (re)afirmou a parceria estratégica "sem limites" entre chineses e russos, parceria essa que tem tudo para se fortalecer nos próximos anos.
Dessa proximidade política sino-russa é que surgirá uma Eurásia capaz de defender sua posição diante do cerco empreendido pelo Ocidente, que terá de lidar – a contragosto – com um continente que ganha cada vez mais importância nesse mundo multipolar em formação.
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