Com efeito, o comportamento nacional frequentemente acaba por refletir as escolhas particulares dos responsáveis pela condução da política externa. Quando se trata de Brasil, por sua vez, vemos que a escolha de Lula foi tentar reaver a altivez das relações internacionais brasileiras que foram uma das marcas de seus dois primeiros mandatos à frente do país. Em todo caso, a maioria dos políticos de fato possuem visões de mundo únicas e, portanto, são essas visões que acabam afetando as percepções dos tomadores de decisão e suas escolhas de discurso. Tais visões, sem prejuízo do que já foi exposto, também sofrem influência da posição do país no sistema internacional e de como é formulado o então chamado "interesse nacional".
Sem sombra de dúvidas, o Brasil é um país no qual as predisposições pessoais do chefe de Estado são geralmente transformadas em orientações gerais para as relações exteriores do país. Isso porque as crenças do líder sempre sugerem formas de interpretar o ambiente internacional, motivo pelo qual o presidente Lula, assim como seu antecessor Bolsonaro, moveu o governo a agir de forma consistente com suas interpretações da realidade. Logo, nota-se aqui a difícil dissociação entre a formação ideológica de Lula e sua ação e conduta política durante esses primeiros seis meses de 2023 que, mais uma vez, caracterizou-se por um "internacionalismo itinerante" e por críticas ao Norte Global.
Marco importante nesse sentido foi a (re)aproximação com a China, que representou o retorno da ênfase na diversificação das relações internacionais do país, mas que também causou certas preocupações quanto a um suposto afastamento do Brasil dos Estados Unidos e do resto Ocidente. Após o restabelecimento de uma melhora no âmbito bilateral, a parceria estratégica sino-brasileira objetivou retomar ações conjuntas em tópicos de interesses comum, como o fomento ao desenvolvimento mais igualitário da globalização e a desdolarização das relações comerciais. Apesar de diferenças em relação aos seus sistemas políticos, ambas, Brasil e China, continuam determinadas a assegurar a sua autonomia nacional, opondo-se a qualquer tipo de interferência externa em seus assuntos internos. Na visita de Lula à China em abril, firmaram-se diversos acordos de cooperação e investimentos chineses no Brasil, além de parcerias no âmbito de transferência de tecnologias.
No que se refere, por sua vez, ao conflito na Ucrânia, o presidente Lula procurou incentivar discussões em âmbito global para um acordo de paz no Leste Europeu. Tal posição brasileira fez com que o governo, por exemplo, não endossasse a declaração final da Cúpula do G7 que ocorreu em maio no Japão, documento esse de tom abertamente confrontacional em relação à Rússia. Lula, apesar de ter participado da reunião do G7 como convidado especial, fez duras críticas ao modo como os países ocidentais têm tratado o conflito, uma vez que a Europa e os Estados Unidos têm ignorado os apelos do Sul Global pela paz.
No âmbito do BRICS, Lula viu sua parceira política de longa-data, Dilma Rousseff, assumir o cargo de chefia do Novo Banco de Desenvolvimento. Apesar de não trazer em si grandes mudanças para o funcionamento prático do banco, a presença de Dilma à frente da instituição é o símbolo de uma época em que o BRICS se movia em uníssono no intuito de aumentar seu prestígio internacional.
No que concerne à América Latina, Lula fez o Brasil retornar ao quadro da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) ainda no começo do ano, sinalizando para o revigoramento das relações brasileiras com a região. No final de maio, Lula também realizou uma cúpula de líderes sul-americanos em Brasília, demonstrou novamente a prioridade do vetor regional para a política externa brasileira em seu terceiro mandato. Com isto, a intenção do governo foi ampliar os processos de cooperação econômica e social entre os países latino-americanos, com o Brasil a desempenhar um papel de liderança nesse processo.
Em relação à Europa, tanto nas cúpulas sobre um novo pacto financeiro em Paris como na recente terceira reunião CELAC-UE, Lula criticou os privilégios europeus nas instituições de Bretton Woods (representadas pelo Banco Mundial e o FMI), a abordagem patronal do Ocidente em relação à questão climática no Sul Global, assim como muitas as dificuldades em torno do acordo Mercosul-União Europeia.
Em relação ao meio ambiente, por exemplo, Lula chamou atenção para o fato de que os países mais industrializados da Europa foram os principais responsáveis pela poluição do planeta ao longo da história, sendo estes os que mais cobram responsabilidade ambiental da América Latina, África e da Ásia. O presidente brasileiro também lamentou o excessivo protecionismo europeu com relação às exportações de carnes e outros alimentos provenientes da América do Sul, enquanto exigem que empresas europeias sejam tratadas com isonomia nos processos licitatórios nacionais. No limite, tais exigências colocariam em risco a indústria local, podendo ter efeitos bastante negativos no emprego e renda. Não por acaso, o Brasil ainda se opõe à implementação do acordo Mercosul-União Europeia, dadas as polêmicas envolvendo a intransigência dos europeus em relação a uma posição mais justa para ambos os blocos.
Em suma, a política externa brasileira no primeiro semestre de 2023 foi marcada pela intenção de promover o Brasil como um dos atores mais importantes do Sul Global, defendendo os interesses latino-americanos em fóruns internacionais de relevância e causando, ainda assim, algumas críticas no âmbito doméstico. Isso porque no Brasil, por vezes, enxergou-se que Lula estivesse se afastando perigosamente das posições defendidas pelos Estados Unidos no sistema, dado sobretudo o contexto atual em torno de uma nova guerra fria entre o eixo euroatlântico (capitaneado pelos americanos) e o eixo euroasiático (capitaneado por China e Rússia). Contudo, o Brasil de Lula, nas palavras do chanceler Mauro Vieira, procurou até aqui simplesmente exercer uma política de "não alinhamento automático" a nenhum dos lados, ao mesmo tempo em que usou seu internacionalismo itinerante para ampliar a margem de manobra de sua diplomacia e retomar seu discurso em defesa do multilateralismo e da multipolaridade nas relações internacionais.
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