O envio de caças F-35 e de armas nucleares dos EUA ao Reino Unido está sendo anunciado como uma resposta às tensões com a Rússia, mas é, na verdade, uma consequência dos planos há muito estabelecidos por Washington para relançar uma estratégia de impasse nuclear da era da Guerra Fria como forma de reafirmar o poder dos EUA. É o que diz, em entrevista à Sputnik, a tenente-coronel da reserva da Força Aérea dos EUA Karen Kwiatkowski, que atuou como analista do Departamento de Defesa americano.
Recentemente, a mídia americana revelou planos do Pentágono para enviar bombas nucleares de propriedade americana para a base aérea de RAF Lakenheath, controlada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e localizada próximo à vila de Lakenheath, em Suffolk, Reino Unido. A medida retoma o envio após uma pausa de 15 anos.
Durante a Guerra Fria, os EUA obtiveram a permissão britânica para armazenar armas nucleares na base aérea de RAF Lakenheath. O objetivo era garantir armamentos para uso potencial contra forças do Pacto de Varsóvia, a liga soviética análoga à OTAN que reunia a maioria dos países socialistas do Leste Europeu. Washington também armazenava armas nucleares nos Países Baixos, na Bélgica, na Alemanha Ocidental, na Itália e na Turquia e mantinha vários acordos com forças aéreas locais para carregar e lançar bombas nucleares americanas. No auge, os EUA chegaram a armazenar 480 bombas nucleares na Europa, sendo 110 na base de RAF Lakenheath.
Em 2008, as bombas nucleares americanas foram retiradas da base de RAF Lakenheath como parte de um acordo de desarmamento, que também incluía a retirada de bombas da Grécia e da Alemanha.
De acordo com Kwiatkowski, a medida não foi necessariamente uma reação ao conflito na Ucrânia. Porém, em entrevista à Sputnik, ela diz que a medida faz parte de uma atualização das armas da OTAN armazenadas em território britânico, que compõe a estratégia observada na última década de expandir a postura ofensiva da aliança — que tem como um dos reflexos o próprio conflito ucraniano.
"Eu vejo esse envio [de armas] como um longo e burocrático plano de atualização para o Reino Unido e a OTAN, não designado para contribuir com a situação ucraniana, exceto na retórica", diz Kwiatkowski.
Ela avalia que o envio de caças F-35 foi planejado e anunciado há muito tempo, sendo o modelo o mais moderno caça multifuncional, no qual muitos países da OTAN investiram e compraram. Segundo Kwiatkowski, o cronograma de entrega de caças geralmente é definido com antecedência, e muitas vezes atrasado.
"Na verdade o Reino Unido começou a aumentar o número de ogivas nucleares em seu território, para lançamento terrestre e aéreo, em 2021. Isso foi feito de maneira discreta, e a estratégia poderia ser vista como uma defesa diante de um panorama global instável, em parte porque os acordos nucleares [de desarmamento] entre EUA e Rússia foram aos poucos sendo abandonados."
Kwiatkowski acrescenta que enxerga a movimentação como uma medida "mais estratégica e oportunista, da perspectiva britânica, de burocratas da defesa americana e de produtores de armas".
"A estratégia adotada pela OTAN em relação às armas nucleares é realmente dependente dos EUA. O ex-presidente americano Donald Trump (2016-2020) pediu por responsabilização pelo desempenho e alguma atenção para o vasto estoque de armas nucleares americanas, e estava disposto a substituir as armas nucleares mais antigas, obsoletas e pouco fiáveis. Os tratados de restrição de armas nucleares existentes precisavam ser renovados e atualizados, já não eram confiáveis", diz Kwiatkowski, acrescentando que, "infelizmente, a renovação e fortalecimento dos tratados nucleares não são alvo de interesse do governo de Joe Biden ou do establishment militar-industrial dos EUA no momento".
Segundo Kwiatkowski, "o Reino Unido e os demais países da OTAN representam um mercado cativo para o complexo militar-industrial dos EUA", o que leva à adoção generalizada de equipamentos de desempenho mediano, como o F-35, e à dependência de estratégias ultrapassadas, incluindo confrontos nucleares da era da Guerra Fria.
"Não vejo uma grande resistência britânica em relação ao F-35 ou a mais armas nucleares, a não ser que o Reino Unido mude a composição de seu parlamento. A liderança britânica parece bastante confortável em enfrentar a Rússia indiretamente, e até que essa falsa ideia de vencer uma guerra nuclear seja amplamente rejeitada no parlamento — e que os primeiros-ministros britânicos sejam menos dependentes e menos alinhados à agenda americana —, a reação interna será o silêncio, e a consequência será o constante aumento da insegurança e da vulnerabilidade britânica", diz Kwiatkowski à Sputnik.
"Eu diria isso mesmo sem a atual situação ucraniana e a guerra por procuração da OTAN. O sistema de armamento americano já não é o melhor, e os caças F-35 são um ótimo exemplo de um produto caro e não confiável, em comparação à antiga reputação americana de excelente produção e design de armamentos, uma reputação que chega ao final de seu ciclo. Um dos grandes propósitos da OTAN é servir como mercado cativo para o complexo militar-industrial americano, o que foi construído diariamente pelo Congresso e pela maioria dos presidentes americanos."
Kwiatkowski destaca que os americanos, como população, não partilham da filosofia neoconservadora, e "boa parte deles recorda do Vietnã, do Iraque e do Afeganistão, décadas de guerras advindas das mesmas questões da Guerra Fria, que não resultaram em nada além de danos e destruição".
"Os mais jovens prestam pouca atenção na história ou nas mensagens do governo, mas, embora não tenham conhecimento de história, eles têm um senso de que o mundo é acessível e compreensível, e uma minoria significante deles se enxerga como cidadãos globais, em vez de nós [americanos] e eles."
Segundo Kwiatkowski, em meio a isso os americanos atravessam um período de crescente descontentamento em relação ao governo e se tornaram mais conscientes da manipulação contra a população.
"É perigoso quando uma linguagem de um 'inimigo cruel' versus 'santos da pátria' impera. A paz se torna impossível de negociar, como temos visto no conflito entre Rússia e Ucrânia. A verdade é tão sistematicamente negada, e o emprego de tempo e energia em mentiras é tão forte, que quando a verdade vence, como sempre acontece, as lideranças políticas e partidos que investiram tanto naquelas mentiras perdem tudo."
Kwiatkowski explica que o objetivo dos EUA ao enviar os caças F-35 para o Reino Unido é "elevar as apostas na questão ucraniana" e enviar uma mensagem à Rússia, e também ao BRICS, de que os EUA são sérios e capazes. Contudo ela opina que o envio de um modelo profundamente problemático mostra que os EUA, de fato, não são nenhuma das duas coisas.
"Há um certo desespero revelado aqui, e essa é a mensagem que, sem querer, está sendo enviada. É esse desespero dos EUA e da OTAN que me preocupa. A Primeira Guerra Mundial ocorreu por conta de erros de julgamento de burocratas e ambições do século XIX de desbancar realezas em um mundo onde elas já não eram bem-vindas ou compreendidas. Estou preocupada que o mesmo esteja ocorrendo hoje, desta vez tendo os EUA como centro", explica Kwiatkowski.