O ex-oficial de inteligência dos Estados Unidos, Scott Ritter, destacou que a declaração do líder russo na plenária do Clube Valdai de Discussões Internacionais concretizou efetivamente uma jornada que ele havia anunciado em um discurso proferido no dia 1º de março de 2018, quando Putin revelou uma série de novas armas estratégicas russas concebidas como resposta à contínua anulação dos acordos de controles de armas relativos à defesa antimísseis da América do Norte.
Em seu discurso de 2018, Putin descreveu os esforços empreendidos pela Rússia ao longo dos anos para fazer com que os EUA reduzissem os programas de defesa antimísseis que a Rússia considerava representar uma ameaça existencial à sua sobrevivência. "Você não ouviu o nosso país naquela época", concluiu Putin. "Ouça-nos agora."
A principal preocupação da Rússia era que a contínua busca dos EUA por capacidades de defesa antimísseis, quando combinada com uma postura nuclear norte-americana que previa a possibilidade de uma guerra nuclear preventiva, poderia criar as condições nas quais os planejadores da guerra nuclear dos EUA poderiam acreditar que um primeiro ataque norte-americano projetado para neutralizar a capacidade nuclear estratégica da Rússia, quando combinado com um escudo de defesa antimísseis que os EUA acreditavam poder abater a maior parte, se não todos, de quaisquer mísseis russos que pudessem sobreviver a tal ataque, poderia na verdade ser viável, pontuou Ritter.
Na plateia do Clube Valdai de de Discussões Internacionais estava Sergei Karaganov, um conhecido cientista político russo que, em um artigo intitulado "Uma decisão difícil, mas necessária", publicado no dia 13 de junho de 2023, na revista Russia in Global Affairs, articulado em favor de que a Rússia se afastasse de uma postura nuclear baseada na retaliação nuclear garantida para uma que favorecesse a prevenção. "Teremos de fazer da dissuasão nuclear novamente um argumento convincente", escreveu Karaganov, "reduzindo o limite para o uso de armas nucleares estabelecido inaceitavelmente alto, e subindo rápida mas prudentemente a escada da escalada da dissuasão".
De acordo com Karaganov, "se construirmos corretamente uma estratégia de intimidação e dissuasão e até mesmo de uso de armas nucleares, o risco de um ataque nuclear 'retaliatório' ou qualquer outro ataque no nosso território pode ser reduzido ao mínimo absoluto. Apenas um louco", argumentou Karaganov, "que, acima de tudo, odeia a América, terá a coragem de contra-atacar em 'defesa' dos europeus, colocando assim o seu próprio país em risco e sacrificando a condicional Boston pela condicional Poznan".
Se tal louco existisse de fato então, observou Karaganov, "teremos de atingir um monte de alvos em vários países, a fim de trazer à razão aqueles que perderam a cabeça. Moralmente, esta é uma escolha terrível, pois usaremos a arma de Deus, condenando-nos assim a graves perdas espirituais. Mas se não fizermos isso, não só a Rússia poderá morrer, mas muito provavelmente toda a civilização humana deixará de existir."
O presidente Putin, usando a prerrogativa que lhe é atribuída por sua posição, apelou a Karaganov para fazer uma pergunta. Isto não foi acidental, dados os protestos que se seguiram à publicação do artigo de Karaganov, o que levou a muitas especulações de que Putin estava considerando adotar uma postura nuclear nos moldes propostos por Karaganov. O acadêmico russo não decepcionou, perguntando ao presidente russo se não seria a hora da Rússia mudar a sua abordagem às armas nucleares e restaurar a sua força dissuasora aos olhos das elites ocidentais que repetem incessantemente que a Rússia é fraca.
Foi uma armadilha. "Li o seu artigo", respondeu Putin, antes de apresentar uma resposta detalhada que deixou claro a todos os que ouviam que o presidente russo não concordava com a tese de Karaganov. "A partir do momento em que o lançamento de mísseis é detectado", disse Putin, "não importa de onde venha — de qualquer ponto do oceano mundial ou de qualquer território — um número tão grande, tantas centenas de nossos mísseis aparecem no ar em um ataque retaliatório de que não há chance de sobrevivência, não restará nenhum único inimigo, e em várias direções ao mesmo tempo", afirmou. Putin exortou a América a compreender que quaisquer ameaças contra a Rússia são "absolutamente inaceitáveis para qualquer potencial agressor".
Em suma, o Presidente Putin estava revigorando a postura nuclear da era da Guerra Fria de destruição mutuamente assegurada como a doutrina nuclear da Rússia.
Além disso, observou Putin, a Rússia lançaria um ataque nuclear contra qualquer país ou países que ameacem a sua existência continuada como Estado soberano, independentemente da ameaça representada ser proveniente de armas nucleares ou de armas convencionais. Dado que hoje não existe tal ameaça existencial para a Rússia, concluiu o Presidente russo, não há razão para ameaçar a utilização de armas nucleares.
No entanto, disse Putin, havia um aspecto da política nuclear russa que poderia, e de fato deveria, ser mudado — a ratificação pela Rússia do Tratado de Proibição de Testes Nucleares. Os Estados Unidos, observou Putin, assinaram o tratado, mas nunca o ratificaram. Dada a modernização do seu arsenal nuclear pela Rússia, que incluía, além do míssil de cruzeiro Burevestnik, o míssil balístico intercontinental pesado Sarmat, o torpedo nuclear Poseidon e veículos de entrega hipersônicos, muitos militares russos exigiam que a Rússia retomasse os testes nucleares para ser certeza de que os novos sistemas de armas estratégicas de ponta que constituem o coração das forças nucleares estratégicas da Rússia funcionam conforme pretendido.
Assim, o analista salienta que a grande notícia do Clube Valdai de Discussões Internacionais não é um novo míssil russo ou uma postura nuclear. A grande notícia é que o presidente russo vai enviar um projeto de lei à Duma russa que revogaria a ratificação do tratado de proibição de testes pela Rússia. A Rússia não vai ser a primeira a retomar os testes de armas nucleares. Mas se os Estados Unidos seguissem esse caminho, a Rússia responderia imediatamente. O ponto importante é que quaisquer testes nos EUA seriam feitos em apoio de armas nucleares herdadas que necessitam urgentemente de serem substituídas, ou de futuras armas nucleares que ainda não foram desenvolvidas e colocadas em serviço.
A Rússia, como sublinhou Putin, já modernizou a sua força nuclear. Se os Estados Unidos retomassem uma corrida às armas nucleares, regressando aos testes nucleares, a Rússia começaria essa corrida com uma liderança intransponível nos sistemas de distribuição nuclear.