Com 175 assinaturas de deputados federais, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2023, chamada de PEC do Equilíbrio entre os Poderes, é uma das medidas que parte do Legislativo brasileiro propõe para reduzir a atuação do Poder Judiciário.
A votação do marco temporal das terras indígenas, a descriminalização do aborto e da posse de maconha, além do casamento homoafetivo, foram alguns dos temas que receberam intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF) e geraram discordância em uma parcela da população.
Em entrevista aos jornalistas Thaiana Oliveira e Maurício Bastos, do podcast Jabuticaba sem Caroço, o cientista político da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Ricardo Ismael avalia que o Judiciário brasileiro tem sido mais ativo nos últimos anos, mesmo antes das reações aos ataques direcionados a membros da Corte, por exemplo.
Ele observa que a “judicialização da política” já existia mesmo antes de recentes episódios, tais como o enfrentamento dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 pelo ministro Alexandre de Moraes, titular do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
"Após a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal tem tido um protagonismo muito maior que as gerações anteriores. Gradativamente, o STF foi assumindo um papel menos passivo", avalia.
O professor ressalta a importância da Corte em atuar contra eventuais problemas dos poderes Executivo e Legislativo, tais como corrupção, mas que os limites devem ser observados.
"Acho que muitas vezes o Congresso reclama com razão quando o Supremo praticamente está legislando assuntos que deveriam ser discutidos no âmbito do Congresso Nacional. Essa é uma prerrogativa constitucional do Congresso. Não há dúvida, o STF deve procurar agir para garantir a Constituição, mas não pode legislar. Então, essa é uma atribuição do Congresso."
Entretanto, o pesquisador ressalta que esse movimento difere das pressões realizadas por grupos aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo.
Ele comenta que o atual titular do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, não deve acelerar a pauta da descriminalização do aborto, "até para evitar essa discussão de estar invadindo o campo constitucional do Congresso."
O próprio Senado, diz ele, também toma medidas para tentar limitar decisões monocráticas, tais como a proposta de reduzir o tempo de permanência dos ministros.
Ainda assim, ele avalia que, no entendimento de Barroso, o enfraquecimento do Poder Judiciário pode resultar no estímulo a grupos antidemocráticos.
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF. Brasília, 22 de novembro de 2021
© Evaristo Sá
Judiciário não é eleitoral
O advogado, professor e fundador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio, Álvaro Palma de Jorge, ressalta que os poderes devem atuar para controlar uns aos outros, mas que o Judiciário não tem o mesmo caráter eleitoral que os demais.
"Na democracia contemporânea, não é só o voto que importa. As pessoas escolhem seus representantes, mas a Constituição diz que existe um limite para ação da maioria", explica ele, citando que decisões que possuem amplo apoio popular podem ser prejudiciais.
"A experiência do mundo com o nazismo, em que você tinha uma maioria tomando decisões a partir do voto, deu no que deu. A humanidade entendeu que não basta o voto. Você precisa ter uma proteção extra, de direitos fundamentais."
Dessa forma, mesmo que decisões possam ser rejeitadas pela população, elas são pautadas na Constituição.
"Isso acontece não só no Brasil, mas em vários lugares do mundo. No Brasil, particularmente, a gente teve o Judiciário atuando muito contundentemente na defesa da democracia e das eleições. E isso gerou um foco novo, mais voltado para a política no sentido eleitoral. Foi o Judiciário, o TSE, o principal agente para garantir a lisura das eleições e garantir que não havia fraude como alguns candidatos vinham alegando", enfatizou.
Não há crise institucional
Os dois professores avaliam que, apesar das divergências, a situação atual não se configura como uma crise institucional.
Com exceção da discussão de temas como o marco temporal das terras indígenas — barrado pelo STF, mas que deve ser reavivado no Congresso —, as disputas de forças têm muito a ver com uma nova configuração política.
Ismael opina que o novo presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, e o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, têm "prestígio" suficiente para evitar tais crises.
Quanto à PEC do Equilíbrio Entre Poderes, pautada pelo deputado federal Domingos Sávio, Palma de Jorge ressalta que já houve tentativa de diferentes formas em outros momentos da República e que foi rejeitada, já que faz parte da atribuição do Judiciário prezar pela Constituição, mesmo que sobreponha as decisões do Legislativo.
"O Parlamento está mais voltado para um assunto, uma percepção. Não é uma crise, no sentido clássico de os poderes não estarem se falando ou brigando."
O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, conversam durante a assinatura da nova lei que aumenta o reajuste anual do salário mínimo no Palácio do Planalto. Brasília, 28 de agosto de 2023
© AFP 2023 / Evaristo Sá
O que o Executivo deve fazer?
Segundo Ismael, o federalismo brasileiro, inspirado no estadunidense, exige um controle entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ainda que, historicamente, a figura presidencial no Brasil tenha muito poder.
Na avaliação dele, o Poder Judiciário limitou o Executivo durante a gestão de Jair Bolsonaro, enquanto o Legislativo não se posicionou tanto — ainda que muitas discussões levadas ao Supremo tenham sido propostas por partidos políticos.
No entanto, agora, deputados e senadores têm se movimentado para "controlar" o Judiciário.
"No período recente, quem controlou o Executivo, sob a gestão Bolsonaro, foi o Judiciário. O Congresso não se dispôs a fazer, até porque no final dos dois últimos anos do governo Bolsonaro era aliado [dele]. Acho também que agora o Congresso Nacional tende a fazer um controle do Poder Judiciário."
Na opinião dele, há maior equilíbrio entre os poderes atualmente. "Lula encontra um Congresso Nacional agora com muito mais autonomia e independência do que os seus dois mandatos anteriores."
Ainda assim, ele avalia que o Executivo, ainda que possa equacionar tais disputas, não deve ser um ator que definirá tais tensões.