Panorama internacional

Por que o mundo multipolar assusta o tio Sam?

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicam por que a perda de poder econômico assusta os EUA e por que Washington teme a Rússia e a China.
Sputnik
Um relatório publicado recentemente pelo Pentágono listou os principais desafios estratégicos atuais para a segurança dos Estados Unidos. O documento aponta a Rússia e a China como desestabilizadores da ordem global. Tal fato expõe o temor de Washington em relação à ascensão do mundo multipolar, liderada por Moscou e Pequim, e a perda da influência americana ao redor do mundo.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicaram por que os EUA temem a perda de poder político e econômico e qual a magnitude das mudanças geopolíticas lideradas por Rússia e China.
Para o coronel da reserva do Exército e mestre em ciências militares Paulo Filho, o documento mostra que os Estados Unidos entendem o mundo como uma disputa pelo poder, e desde a Segunda Guerra Mundial a configuração geopolítica e econômica global beneficia Washington. Nesse contexto, ele afirma que a ascensão de novos atores — no caso, Rússia e China, com tentativas de mudar a ordem vigente — é considerada pelos EUA uma ameaça.
"Os Estados Unidos notaram uma mudança na ordem internacional, uma emergência de novos atores, e reagem a essa emergência", explica Paulo Filho.
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Ele acrescenta que "os EUA sempre se colocaram, desde a sua criação, como uma espécie de entidade com uma missão, uma visão missionária do mundo", e que "a melhor maneira do mundo se regular, o melhor sistema, seria o seu próprio sistema da democracia liberal".

"[…] eles [EUA] sempre atuaram, especialmente depois de se tornarem os grandes vitoriosos depois da Segunda Guerra Mundial — junto com a União Soviética, a China, a França e o Reino Unido —, como os vencedores daquela ordem."

Segundo o especialista, o término da Guerra Fria e a fragmentação da União Soviética foram entendidos como uma vitória por Washington, e a crença dos Estados Unidos era de que "o mundo caminharia, quase por gravidade, para um sistema democrático e liberal" no estilo norte-americano.
"E isso favorece os Estados Unidos, porque toda a ordem internacional foi construída de acordo com os interesses norte-americanos. O próprio sistema de Bretton Woods, todo o sistema econômico internacional, no sentido de manter, de espalhar o sistema que os EUA consideram o melhor, o mais importante, e que também os beneficia. Quando surgiu a emergência da China e a Rússia passou a atuar também defendendo seus interesses, os EUA se sentiram ameaçados em todos os campos, tanto no campo econômico quanto geopolítico, e aí passaram a reagir."
Paulo Filho explica que esse sentimento de ameaça vivenciado pelos EUA é natural em potências hegemônicas que não querem perder a sua influência, e cita como exemplo países europeus.

"Espanha, especialmente, depois Portugal como uma grande potência na época do descobrimento. Depois a França, o Reino Unido, os EUA. Essas potências sempre se comportaram como potências hegemônicas. Acho que é natural da história humana. Isso acontece desde as guerras entre Atenas e Esparta."

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Ele destaca que o motivo de os EUA temerem a Rússia e a China é o fato de que ambas são potências nucleares.
"Tanto Rússia quanto China são potências nucleares com uma enorme capacidade de oferecer a chamada segunda resposta. Embora os EUA sejam a maior potência militar, algo facilmente comprovado pelo tamanho do seu orçamento militar, o fato de Rússia e China serem potências nucleares [...] evidentemente causa, sim, apreensão nos Estados Unidos."
Paulo Filho também aborda o avanço da militarização industrial ao redor do mundo, que atingiu o maior nível desde a Guerra Fria.

"Nós estamos vivendo no momento mais perigoso da nossa geração. O momento mais perigoso que ocorreu no mundo antes do atual foi a crise dos mísseis, na década de 1960. E aí acontece o chamado dilema de segurança. […] O país reconhece em outro um adversário, uma fonte de perigo. E, por causa disso, ele se arma. E por ele se armar, aquele adversário também reconhece nele uma fonte de perigo e também se arma. É o chamado dilema de segurança, mais popularmente conhecido como corrida armamentista."

O especialista acrescenta que isso é o que está ocorrendo atualmente na Europa, e cita como exemplo o fato de a Suécia e a Finlândia, antes países historicamente neutros, terem entrado para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e, também, o caso do mar do Sul da China.
"Isso acontece com a China e as Filipinas, por exemplo, que estão tendo atritos no mar do Sul da China. Isso acontece em vários lugares do mundo, na Europa, na África. Nós temos inúmeras guerras na África."
O especialista destaca que, atualmente, o dilema de segurança está presente em todo o mundo, com exceção da América do Sul.

"O Brasil tem a sorte de estar na América do Sul. O Brasil e os vizinhos sul-americanos estão em um ambiente de paz. Nós não temos nenhuma ameaça latente com nenhum dos nossos vizinhos. Então, esse dilema de segurança não é uma realidade para nós. Agora nós vamos ser cada vez mais pressionados no ambiente internacional a nos posicionarmos de um lado ou de outro", explica Paulo Filho.

Ele alerta que, "à medida que blocos vão se formando, a situação começa a ficar mais parecida como era na Guerra Fria", e cita como exemplo o ingresso do Irã no BRICS.
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"O Irã é colocado como um inimigo dos EUA. [...] Se o BRICS começa a se comportar como um bloco geopolítico, os EUA, que estão aqui no nosso hemisfério, nossos vizinhos, vão olhar para nós e falar: 'E aí, Brasil, você vai ficar de que lado? Do lado da China, da Índia e do Irã ou do meu lado?' Então nós vamos começar a ser mais pressionados. Não tem como fugir dessa tensão geopolítica global. Mesmo estando em um subcontinente pacífico como o nosso, essa tensão geopolítica vai nos atingir também."
Ainda sobre o BRICS, Paulo Filho destaca que o processo de desdolarização — observado na economia global — e a intenção do grupo de lançar uma moeda única também são vistos pelos EUA como ameaça.

"A ordem internacional que os EUA construíram depois do pós-guerra, essa hegemonia, se deve muito à utilização do dólar como uma moeda franca, como uma moeda das transações comerciais internacionais. Afinal de contas, os Estados Unidos podem emitir moeda sem parar, sem medo de ser feliz e sem gerar inflação, porque […] vai ser utilizada por alguém em outro país. […] Isso é uma vantagem competitiva enorme para os EUA. Então, quando os EUA percebem essas tentativas de mudar isso, se sentem ameaçados."

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Carlos Alexandre Klomfahs, advogado na área de direito internacional, com atuação na área de inteligência corporativa, e mestrando na Escola Superior de Guerra (ESG), argumenta que a perda de influência dos EUA não começou agora, mas com a campanha fracassada no Vietnã.
"A perda de hegemonia dos EUA começou realmente lá no final da Guerra do Vietnã. E essa perda de prestígio foi encontrar algumas partes que mais favorecem uma desestabilização da economia americana, agora com a substituição do dólar por países como Rússia e China em relação à exportação de petróleo. Então, realmente, acho que começa a ser uma atitude dos EUA de demonstrar insegurança diante da falta de prestígio pela qual estão passando no momento."
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Ele acrescenta que a perda de influência dos EUA é tanto geopolítica quanto econômica. "Do ponto de vista político, o que a gente percebe na parte do direito é totalmente uma inversão de valores. Não há mais uma observância do direito internacional. Você pode perceber que até a própria ONU [Organização das Nações Unidas] perdeu muito prestígio, tanto nas questões que foram levadas pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU, quanto as questões agora envolvendo o conflito entre Israel e os palestinos, ou entre Israel e o Hamas."
Carlos Alexandre afirma que a perda de influência de Washington, que se desenha há anos, "está encontrando o seu clímax". Ele afirma que a própria ascensão do BRICS, em que os membros do grupo reúnem 40% da economia mundial, é um exemplo disso.

"Rússia e China são os grandes parceiros, junto com a Índia, o Brasil e a África do Sul. Esse tem sido o foco da resistência americana e, por outro lado, um foco de atenção da China e da Rússia em relação à Nova Rota da Seda, que tem suas várias rotas, e uma delas passa exatamente onde há o conflito no Oriente Médio."

Outro fator de preocupação dos EUA é o poderio militar da Rússia, comprovado com a bem-sucedida campanha militar russa na Ucrânia, apesar dos esforços de aliados ocidentais de Kiev.
"O que eles [EUA] perceberam — mas que nunca é publicado no mainstream, na mídia ocidental — são todos os sucessos militares levados a cabo pela Rússia na 'guerra proxy' contra a Rússia. Não é guerra contra a Ucrânia. A guerra, na verdade, é contra a Rússia", diz o especialista.
Ele acrescenta que a resiliência econômica russa também não passou despercebida por Washington, tornando-se alvo de preocupação.

"Eles [EUA] puderam ver, tanto do ponto de vista estratégico, tático e político que a Rússia vem acumulando expertise nos últimos anos, ganhando uma hegemonia econômica com a exportação de petróleo e gás para a Europa, inclusive para os próprios EUA, que não deixaram de importar petróleo e gás da Rússia."

Por fim, Carlos Alexandre afirma considerar que "a América Latina será a próxima bola da vez" dos EUA.
"Há uma preocupação dos EUA, porque aqui é o quintal deles. A Doutrina Monroe, muito antiga, já falava em América para os americanos. Então ela nasceu no sentido de querer afastar a Europa de interferir nos assuntos da América, porque, como diziam os norte-americanos, 'aqui quem manda sou eu'."
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