Panorama internacional

Fala de Biden sobre guerras gerarem 'responsabilidade' busca naturalizar confrontos, diz pesquisador

Em artigo recente no Washington Post, o presidente Joe Biden voltou a defender que os EUA são a âncora do mundo moderno e responsáveis por garantir "a ordem e a estabilidade" globais. Enquanto isso, o país é o principal fiador de mais um conflito que desestabiliza o Oriente Médio e que em menos de seis semanas já matou mais de 14,5 mil palestinos.
Sputnik
Um discurso "pobre e violento", que reafirma velhas políticas dos Estados Unidos que tanto fizeram mal ao mundo nas últimas décadas. Assim o professor de história e pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas (Nucleas) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) João Cláudio Pitillo analisou, para a Sputnik Brasil, as falas de Biden no artigo publicado no último fim de semana.

"Os estadunidenses têm a sua marca registrada através da guerra. É uma nação que recorre a ela para resolver os seus problemas econômicos. E nós sabemos que guerra é uma tragédia, independente do tamanho. É uma tragédia porque acaba ceifando vidas, impedindo o desenvolvimento, trazendo miséria, doença e desequilíbrio ambiental. A guerra é o pior de tudo. Mas os EUA gostam de naturalizá-la", defendeu.

Mais uma vez, o democrata traz a fala de que os Estados Unidos são a "nação essencial para garantir a estabilidade e a integração regional", em meio ao apoio integral a Israel na guerra sangrenta que promove na Faixa de Gaza e desestabiliza ainda mais o Oriente Médio.
E não é preciso voltar muito no tempo para mostrar que a história prova os efeitos devastadores da interferência sem fim norte-americana nos assuntos do mundo, segundo o especialista: durante a invasão do Iraque em 2003, que acabou se transformando em um longo conflito, o país gastou pelo menos US$ 1 trilhão (R$ 4,9 trilhões) para criar "um país pior do que era antes".
"Essa fala de dizer que grandes tragédias [guerras] geram responsabilidade é uma visão belicista da economia, já que sempre interessa somente o pós-guerra […]. Esse trilhão de dólares faz falta hoje entre os pobres estadunidenses, principalmente aqueles que não têm acesso à saúde pública", acrescentou o professor da UERJ.
A retórica de Biden acontece em meio à queda da popularidade do atual governo, cuja aprovação ficou abaixo de 40% em novembro.
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Enquanto isso, o país passa por uma crise orçamentária, dívida pública que ultrapassa US$ 33 trilhões (R$ 160 trilhões) e um dos piores índices de pobreza do chamado mundo desenvolvido. Em setembro, o índice ultrapassou 12% da população após a retirada de auxílios criados durante a pandemia.

"O artigo de Biden é direcionado ao seu público interno, com a intenção de adular os setores mais reacionários da sociedade estadunidense para que não haja críticas a essa derrama gigantesca de dinheiro em suas bases militares espalhadas pelo mundo", argumenta Pitillo.

Para o pesquisador, Biden mantém a mesma política de desestabilização norte-americana dos últimos 80 anos no Oriente Médio.
"Estamos falando do país que está dentro da Síria de maneira ilegal. Os EUA apoiaram a Primaveras Árabe que, no fim, não passou de um movimento para prejudicar ainda mais a região. Quando Biden compara o Hamas a Vladimir Putin [presidente russo], é pura propaganda de guerra, de alimentar o sentimento antiárabe e antirusso, esse mesmo sentimento que marcou a Guerra Fria […] para criar inimigos e factoides. Nisso, você acaba fomentando o ódio e a discriminação."
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Europa 'come migalhas' dos EUA

No artigo, Joe Biden também cita parceiros norte-americanos de longa data: os países da União Europeia (UE), que junto com os Estados Unidos financiam o governo do presidente Vladimir Zelensky frente ao conflito na Ucrânia.
Aliado a isso, defende João Cláudio Pitillo, Washington tem levado a Europa a uma espiral de decadência que já dura pelo menos 40 anos. "Cada vez mais essa Europa ocidental foi perdendo sua identidade e se tornando um satélite americano para a política externa imperialista, na qual os EUA ficam com a grande fatia e permitem que esses países comam apenas migalhas", afirmou.
A subserviência europeia ao projeto norte-americano é uma "vergonha" e está na "contramão de toda a história do continente", enfatizou o analista. Em troca de bancar o luxo bélico norte-americano, o especialista afirmou que o bloco passou a destruir políticas de bem-estar social por conta do neoliberalismo exportado pela América do Norte.

O resultado, em sua avaliação, é o "ressurgimento do fascismo na Europa, que coloca o continente em uma situação econômica de grande debilidade".

Um exemplo do turbilhão que os norte-americanos levaram para o continente acumulado nas últimas décadas seria a saída do Reino Unido do bloco europeu (Brexit), país que Pitillo considera "totalmente perdido no jogo político internacional".
Já com relação à "aventura suicida em que os Estados Unidos colocaram a Europa" por conta da Ucrânia, como o professor classifica, a região abre "mão de ter gás russo barato para viver uma inflação energética, que causa efeito dominó em todas as instâncias da sociedade".
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EUA e a ambição de serem 'poder moderador do mundo'

Também em entrevista à Sputnik Brasil, a doutora em relações internacionais Nathana Garcez, membra-colaboradora do Centro de Estudos Contemporâneos do Século XX da Universidade de Coimbra, avalia que Biden busca reforçar a ideia de que "os Estados Unidos são o poder moderador do sistema internacional e maior potência do mundo".
A especialista lembra que os EUA defendem o modelo criado pelo próprio país, mesmo após a Segunda Guerra Mundial. Assim, iniciaram a construção da hegemonia americana no mundo capitalista e a ideia de que são parte integral e fundamental para a manutenção da estabilidade e integração regional.
"Essa ideia acabou sendo ainda mais reforçada com os ataques de 11 de setembro [de 2001] e a posterior guerra ao terror implementada. No entanto, nos últimos 15 anos, outras nações passaram a se beneficiar dessas regras do sistema […]. A partir daí, vemos o crescimento exponencial da China, o fortalecimento do poder russo na última década e o despontar de outros países como a própria Índia, além do BRICS [que inclui o Brasil]", exemplifica.
Aceitar a transformação que há décadas acontece no mundo, pontua a analista, seria em última instância para os EUA "uma mácula irreversível para a sua condição" hegemônica no globo.
"Portanto, para Biden, existem dois caminhos: um é ser disruptivo, quebrar as regras do sistema que os próprios Estados Unidos criaram e recriá-las de forma que beneficiem novamente apenas o país. Uma segunda opção é tentar manter a ordem, reforçar seu papel integrador e garantidor, ainda que em meio à disputa com outras potências", disse. Para Garcez, Biden escolheu a segunda opção.
Já a internacionalista e consultora de comércio exterior Alana Monteiro Leal Rêgo acrescentou que "não é nenhuma surpresa que essa seja a ideologia presente em posicionamentos dos EUA ao longo da história". Ela lembrou que durante anos houve interferência norte-americana na política da América Latina, inclusive no Brasil. "É uma posição já esperada, tanto em ações veladas ou diretas quanto na análise de discurso", afirma.

Tentativa de quebrar política isolacionista

Já a professora de relações internacionais Leticia Rizzotti traz outro ponto sobre os posicionamentos do presidente Joe Biden: a tentativa de quebrar a política isolacionista que marcou os EUA durante o governo republicano de Donald Trump. "Em primeiro lugar, os democratas sempre tiveram esses pontos fundamentais da política externa, de firmar o país como liderança, até mais do que os republicanos", explica.
Aliado a isso, a especialista lembra que há dificuldades econômicas internas e que, desde a grande crise de 2008, os EUA nunca mais voltaram a ser os grandes atores de crescimento da economia mundial.
"Esse sentimento de [não] cuidar das questões internas acaba refletindo nas pesquisas [de popularidade do governo Biden e, também, nas intenções de voto para 2024]".
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