A Rússia e a China entenderam que a verdadeira força dos EUA não vinha de suas armas nucleares ou da economia, mas de seu dólar onipotente, que tem diminuído no comércio, mas ainda domina o mundo das finanças globais. Apesar disso, Javier Milei, o novo presidente da Argentina, decidiu realizar a dolarização da economia em crise de seu país.
O conflito patrocinado pelos EUA na Ucrânia contra a Rússia e a panóplia de sanções aumentaram a desdolarização em curso. Mesmo Larry Fink, diretor-geral do BlackRock, a multinacional norte-americana de gestão de investimentos mais poderosa do mundo, com cerca de US$ 10 trilhões (R$ 49,04 trilhões) em ativos por ele geridos, sentenciou o "fim da globalização devido ao conflito na Ucrânia", o que expõe o modelo plutocrático de globalização como sendo imposto pela força das armas.
Na opinião de Alfredo Jalife-Rahme, um especialista mexicano, há três tipos de desdolarização:
1.
Desdolarização comercial de curto prazo, ou desdolarização suave, quando há uma redução acentuada do dólar no comércio;2.
Desdolarização paradoxal, quando há uma revalorização simultânea do dólar como "moeda de pagamento" e não como "reserva" em títulos financeiros, muitas vezes usado como "arma financeira" para punir adversários geopolíticos, em forma de fuga de capitais, como no caso de muitas moedas de mercados emergentes;3.
Desdolarização financeira a médio e longo prazo, ou desdolarização dura, com perda do status do dólar como "moeda de reserva". Esse não é um processo fácil quando os EUA controlam todo o mecanismo financeiro global.A tarefa de promover a desdolarização financeira é explicada pelo Instituto de Investimento do Wells Fargo, o quinto banco mais poderoso dos EUA, que considera o dólar parte integrante do "encanamento das finanças globais", por envolver 90% dos mais de US$ 7,5 trilhões (R$ 36,78 trilhões) de negociações diárias de câmbio (Forex). Ou seja, não existe Forex sem SWIFT e vice-versa, explica o especialista.
A desdolarização suave está ocorrendo sem problemas, enquanto a dura, a queda do dólar como "moeda de reserva", levará mais tempo, à medida que o mundo se move em direção a um "condomínio de moedas de reserva".
"Obviamente, não estamos desenvolvendo nossa linha contra os EUA, contra o Ocidente, não que queiramos arruinar o dólar. Os EUA não garantem mais um papel global para o dólar que satisfaça a todos. Esse é o problema", expressou Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, talvez sabendo da inevitabilidade do sistema multipolar e seu corolário, a desdolarização. Ele acrescentou que nenhuma das chamadas "moedas de reserva", o euro, o iene japonês e o dólar, é confiável.
Na opinião de James Rickards, ex-conselheiro financeiro do Pentágono, a "militarização do dólar" por meio da aplicação de sanções contribuiu para a revolta financeira do BRICS, que acontecerá em três estágios:
2.
Custos invisíveis impostos aos EUA;3.
Eventual colapso da confiança no próprio dólar.Os dois primeiros já foram alcançados e agora nos aproximamos do terceiro estágio. Rickards prevê que a moeda do BRICS+ será sustentada por uma "cesta de mercadorias" que inclui petróleo, trigo, cobre e outros bens essenciais comercializados globalmente em quantidades específicas, diz Jalife-Rahme.
O triunfo tragicômico de Javier Milei na Argentina, com sua tentativa de dolarização anacrônica, a saída do BRICS, a ruptura comercial com a China (o segundo parceiro comercial do país e Estado-membro do BRICS) e a saída do Mercosul, é assim um ato de pensamento mágico, aponta o analista.
Além de propostas como legalizar a venda de órgãos, com um Congresso contra ele, Milei argumenta que, para superar a crise econômica endêmica da Argentina, com uma taxa de inflação de 142% e uma enorme desvalorização acumulada, é necessário fechar o Banco Central, o emissor soberano da moeda argentina.
Segundo Claudio Loser, ex-diretor do FMI para a América Latina, "para realizar uma dolarização ordenada, é necessário ter uma quantidade suficiente de dólares para substituir os pesos existentes e dolarizar o sistema financeiro".
A agência britânica BBC diz que "o próprio Milei estimou, durante a campanha, que isso custaria cerca de US$ 35 bilhões [R$ 171,65 bilhões], o que ele acredita que poderia ser coberto com o uso de reservas e títulos mantidos pelo Banco Central".
Além disso, a Argentina precisa renegociar uma dívida de US$ 44 bilhões (R$ 215,78 bilhões) com o FMI, o que a forçará a adotar a clássica "terapia de choque" punitiva quando o Banco Central praticamente não tem reservas. Isso se opõe ao gradualismo da desdolarização do BRICS.
Alfredo Jalife-Rahme lembra que a dolarização do Panamá e do Equador não resolveu a ingovernabilidade, altos índices de criminalidade, nem a fratura social dos dois países.
"A dolarização não é uma panaceia, muito menos para um país como a Argentina, que sofre com vários desafios que vão além do reducionismo econômico anti-inflacionário", conclui ele.