Por certo, o regresso de Lula à presidência do Brasil foi marcado por um acentuado desejo de participação do país na discussão de questões globais prementes. Tais questões hoje envolvem sobretudo o conflito na Ucrânia e, desde outubro deste ano, a eclosão das hostilidades em Gaza.
Ambos os desafios têm colocado à prova as habilidades da diplomacia brasileira, em especial no âmbito do Conselho de Segurança da ONU. Os bombardeios israelenses em Gaza, que grande parte do Sul Global enxergou como desproporcionais, representaram um teste também para a autoridade do Conselho de Segurança, que se mostrou incapaz de mediar uma solução célere para a crise no Oriente Médio.
Vale lembrar que, ainda no dia 16 de outubro, a Rússia, apoiada pelo mundo árabe, buscou no âmbito do Conselho de Segurança uma solução negociada para o conflito em Gaza, através da implementação imediata de um cessar-fogo humanitário entre Israel e as forças atuantes na região.
Contudo, as propostas russas foram vetadas por potências ocidentais como Japão, França e Reino Unido e sobretudo pelos Estados Unidos, causando efetivamente o prolongamento do conflito e do derramamento de sangue de milhares de palestinos.
O mundo passou então a testemunhar uma sequência de tragédias, como foi o caso do ataque ao hospital Al-Ahli no dia 17, vitimando centenas de civis inocentes. Diante da catástrofe humanitária que se desenhou, Lula e a diplomacia brasileira enfrentaram grandes dificuldades em promover uma solução para a crise.
Presidindo as reuniões no Conselho de Segurança, o Brasil tentou passar resoluções (como as do dia 18 de outubro) que pediam uma "pausa humanitária" e um cessar-fogo às hostilidades na Faixa de Gaza. A proposta brasileira, contudo, embora apoiada no mundo árabe, acabou sendo vetada de forma unilateral pelos Estados Unidos, contribuindo para o prolongamento da violência na região.
Esbarrando nos jogos de poder de Washington e em seu apoio incondicional e inamovível a Israel, Lula e o Itamaraty pouco poderiam fazer, independentemente dos bons ofícios da diplomacia brasileira, para resolver a situação.
Não por acaso, durante entrevista recente a uma rede de TV árabe, Lula fez críticas primeiro aos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, por agirem de forma unilateral e sem consultar as demais potências do sistema, e, em segundo lugar, ao uso do veto (como o utilizado pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais) para impedir a solução da crise humanitária em Gaza. Segundo as palavras de Lula, "falta governança no mundo porque não há liderança no mundo hoje".
Lula prosseguiu lamentando a ausência de verdadeiros líderes globais e a perda de credibilidade do Conselho de Segurança, cujas decisões deveriam ser respeitadas e cumpridas por toda a comunidade internacional. Afinal, no âmbito da entrevista, Lula fez questão de mencionar que o conflito em Gaza já vitimou quase 16 mil pessoas, entre elas mais de 6 mil crianças, além de ter contribuído para a destruição de mais de 40 mil casas e até mesmo de hospitais.
Em uma de suas mais fortes colocações, o presidente brasileiro afirmou que "o ser humano não é mais humano. Ele não é [mais] humanista. Não temos coração, não temos fraternidade". A insistência de Lula, e da diplomacia brasileira de um modo geral, consiste em uma solução de dois Estados na região (Israel e Palestina), onde ambos possam coexistir lado a lado e contar com fronteiras internacionalmente reconhecidas.
A proposta do Brasil remonta aos esforços de seu eminente diplomata Oswaldo Aranha, que presidiu a Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947, contribuindo para a elaboração da resolução 181 daquele ano, que recomendava a partição da Palestina em dois Estados distintos, um judeu e um árabe. Infelizmente, até que uma solução de dois Estados convivendo em paz e em segurança seja alcançada, Lula e seu assessor para assuntos estrangeiros Celso Amorim continuarão a lamentar a perda de vidas inocentes em decorrência da violência regional, que já dura décadas.
Na entrevista à TV árabe, ademais, Lula disse que se a ONU realmente tivesse força, ela conseguiria operacionalizar a formação de um Estado palestino estável e economicamente viável. Porém, nas palavras do presidente brasileiro, há uma "ausência de comando no processo de tomada de decisões nas Nações Unidas", o que impede pensar nesse tipo de cenário a curto e mesmo a médio prazo.
E então temos o principal ponto da crítica de Lula. Ao se referir ao presidente americano, Joe Biden, o mandatário brasileiro afirmou que lhe falta "sensibilidade" para — em suas palavras — "acabar com a guerra". Continuou dizendo que os Estados Unidos possuem enorme influência sobre Israel, o que não deixa de ser verdade, sobretudo quando se trata de apoio militar.
Diante desse contexto, tanto Washington quanto Tel Aviv, apontou Lula, "poderiam ter parado a guerra e sentar-se à mesa de negociações para conversar. A palavra custa menos que uma arma e mata menos que um rifle".
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, posa para foto com Jaques Wagner (ao centro), senador brasileiro governista, e o presidente de Israel, Isaac Herzog, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2023 (COP28), em Dubai, Emirados Árabes Unidos, em 1º de dezembro
© Foto / Palácio do Planalto / Ricardo Stuckert / CC BY 2.0
Entretanto, o que Lula não entende é que essa tal "insensibilidade americana" é, na verdade, proposital, e não um acidente de percurso. Afinal Biden, também em entrevista recente, afirmou sem o menor pudor que os Estados Unidos são plenamente capazes de lidar com múltiplas guerras ao mesmo tempo, por serem "a nação mais poderosa da história da humanidade".
Logo, o fracasso do Conselho de Segurança em encontrar uma solução antecipada para as hostilidades em Gaza deve ser entendido através desse prisma. A razão da insensibilidade americana diante do número de vítimas palestinas na Faixa de Gaza ao longo desses últimos meses é uma só.
Trata-se do insaciável desejo estadunidense de preservar sua hegemonia e proteger seus interesses econômicos no Oriente Médio. As ações militares perpetradas por Israel, nesse contexto todo, são apenas um instrumento para esse fim.
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