Para os especialistas ouvidos pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, apresentadores do Mundioka, podcast diário da Sputnik Brasil, o Brasil terá um lugar um tanto quanto singular dentro desses processos indenizatórios, que totalizam US$ 131 trilhões (R$ 640 trilhões) em reparações.
Como começou a escravidão africana no Brasil?
A escravidão africana no Brasil começou por volta de 1530, quando os portugueses estavam fincando as bases da colônia extrativista no Brasil.
A colonização da América portuguesa era, de início, para atender a mão de obra para produção nas lavouras.
A solução encontrada pelos colonizadores portugueses foi, então, sequestrar e trazer à força pessoas negras egressas de países da África.
Começaria ali um tráfico humano ultramarino que se perpetuaria pelos três séculos seguintes, até ser interrompido em 1850, por meio da promulgação da Lei Eusébio de Queirós.
"Somos um país que foi colonizado e, dentro dessa premissa, nós não tínhamos uma soberania, não tínhamos autonomia para escolher qual o caminho que poderíamos seguir", afirmou Priscila Caneparo, professora de direito internacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
De acordo com a analista, a dívida brasileira de US$ 4,4 trilhões (R$ 21 trilhões) é um valor muito mais atrelado às responsabilidades de Portugal, Holanda e Inglaterra do que a brasileira.
Nesse contexto, pode caber ao país pedir indenizações à essas nações europeias relativas a esse histórico.
"O Brasil vai ser autor e réu dentro dessa perspectiva."
Qual o objetivo da União Africana?
As indenizações requeridas pelos países da União Africana foram descritas no Relatório Battle, documento que detalha as responsabilidades financeiras e cria etapas concretas para o reparo histórico aos países da África.
Segundo o documento, "os Estados Unidos devem quase US$ 27 trilhões (R$ 132 trilhões), o Reino Unido US$ 24 trilhões (R$ 118 trilhões), e Portugal US$ 21 trilhões (R$ 103 trilhões)", aponta Caneparo.
Priscila Caneparo ressalta ainda que a escravidão e a comercialização de pessoas são crimes internacionais, que "ultrajam a consciência da humanidade, são os crimes mais decadentes em termos de direitos humanos".
"E crimes internacionais não prescrevem. Então, não dá para argumentar que aconteceu no século XV e no século XIX, já estão prescritos."
Nesse sentido, afirma, se a comunidade internacional perante às instituições supranacionais, como a ONU, não tomar uma atitude de reparo, "só vamos perpetuar as consequências da escravidão do século XV até o século XIX".
Quais os desafios da União Africana?
No entanto, Jean Menezes, advogado e professor de MBA em direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destacou que embora os crimes sejam imprescritíveis, a indenização não é. "O crime não é a indenização. A indenização é uma responsabilidade pecuniária no plano civil, ou no plano internacional civil, o crime é outra esfera."
Para Menezes, embora haja a cobrança por parte das nações africanas, é difícil que ela se concretize, uma vez que no cenário internacional não há a possibilidade de se forçar o pagamento. "Quando o devedor não paga, o juiz chama a polícia, vai lá ou pega a receita e tira dinheiro da conta do cara, manu militari, quer dizer, à força."
Por isso, o especialista ressalta o caráter exemplar da indenização, "no sentido de passar um exemplo para o mundo".
"Esses valores são válidos, mas eu diria que eles valem politicamente como uma flâmula, como uma ideia exemplar e ética para que o mundo se conscientize."
Caneparo concorda com a opinião de Menezes de que dificilmente um montante do tamanho de US$ 131 trilhões (R$ 640 trilhões) será pago em sua integridade, ainda que "sendo reta e direta, o problema é deles".
Para ela, contudo, as indenizações, além de serem uma reparação histórica, serve para abrir portas para as pautas do Sul Global dentro do mundo jurídico internacional e "vejamos uma reconfiguração do discurso e também daqueles temas trabalhados a partir também dos nossos interesses".