Isso porque em 2023 as relações russo-chinesas atingiram o nível mais alto em toda a sua história e continuam a fortalecer-se; em qualidade, conforme avaliação do presidente russo Vladimir Putin, elas chegaram até mesmo a ultrapassar as alianças político-militares do período da Guerra Fria.
Influenciada pelas ideias do renomado diplomata russo Evgeny Primakov (ministro das Relações Exteriores de 1996 a 1998 e primeiro-ministro entre 1998 e 1999), a Rússia dos anos 2000 entendeu a necessidade de defender seus interesses nacionais por meio de parcerias estratégicas com potências asiáticas emergentes, e em especial com a China.
Moscou e Pequim, aliás, são hoje as principais defensoras da formação de uma ordem mundial multipolar mais equitativa, algo que vem sendo defendido em diversas outras iniciativas multilaterais importantes como a Organização de Cooperação de Xangai, o G20 e o BRICS.
Estes movimentos têm sido encabeçados justamente por grandes potências terrestres contidas na Eurásia, como é o caso de Rússia, China, Índia, Irã, entre outras. Eurásia que, vale lembrar, representa a conjunção dos continentes europeu e asiático, sendo a região que, segundo o estrategista americano Zbigniew Brzezinski, abriga "a maioria dos Estados politicamente assertivos e dinâmicos do mundo".
Ministros e autoridades dos países-membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), 5 de maio de 2023
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Dentro dessa megacontinente, a Ásia em particular é uma das regiões mais cobiçadas do ponto de vista geopolítico, tornando-se palco das pretensões hegemônicas do Império Britânico desde o século XIX e, posteriormente, dos Estados Unidos (ambas potências marítimas), no intuito de conter potências terrestres como o Império Russo, a União Soviética e a China de Mao.
Hoje, um exemplo clássico dessa tentativa de contenção, dessa vez contra a China de Xi Jinping, trata-se do Quad (Diálogo Quadrilateral de Segurança), encabeçado pelos Estados Unidos e que conta com a participação de Japão, Austrália e Índia, promovendo a realização de exercícios militares destinados à demonstração de força perante Pequim.
Afinal, o principal aliado estadunidense na Ásia, a saber, o Japão, já declarou em documentos recentes de seu Ministério da Defesa uma clara preocupação quanto ao aumento da capacidade militar chinesa na região, tanto em forças convencionais quanto nucleares.
Percebe-se também que o Japão – que abriga bases militares dos Estados Unidos em seu território – considera a coordenação estratégica entre Rússia e China (as duas Grandes Potências da Eurásia) motivo de "forte preocupação", afirmando que o mundo "enfrenta o ambiente de segurança mais severo e complexo desde o final da Segunda Guerra Mundial".
Aqui, é importante ressaltar que as vendas de armamento russo à China representaram aproximadamente 80% do total das importações de armamento realizadas por Pequim durante toda a década de 1990 e boa parte dos anos 2000, servindo de alicerce para o fortalecimento das relações políticas entre os dois países.
Para os russos, a venda de armas ao vizinho tornou-se um fator essencial para a sobrevivência de seu complexo militar após a dissolução soviética; já para os chineses, a aquisição de armamentos da Rússia serviu como forma de equipar e modernizar suas Forças Armadas, durante o período em que a China se encontrava sob fortes embargos ocidentais.
Em 2005, por sua vez, Rússia e China conduziram seu primeiro exercício militar conjunto, intitulado Missão de Paz e que envolveu cerca de 10 mil soldados.
Uma foto disponibilizada pelo Exército iraniano mostra navios de guerra iranianos, russos e chineses durante um exercício militar conjunto no oceano Índico
© AFP 2023 / -
Voltado para ações de "contraterrorismo", o uso de bombardeiros de longo alcance e atividades de bloqueio aéreo e naval demonstraram que tanto russos como chineses viam esses exercícios como uma oportunidade de demonstrar o grau de solidariedade política entre as principais potências terrestres do continente Eurasiático.
Não obstante, desde 2012 China e Rússia realizam exercícios navais bilaterais conhecidos como Mar Conjunto (Joint-Sea), ou seja, sinalizando que, mesmo no mar, ambos os países estão prontos para a defesa de seus interesses nacionais.
Diante dessa cooperação cada vez mais profunda entre Moscou e Pequim, a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos de 2017 considerou-as um desafio ao poder, à influência e aos interesses americanos no mundo, classificando Rússia e China como "potências revisionistas" que buscam moldar o sistema internacional de acordo com valores contrários aos do mundo anglo-saxão.
Menos de um ano depois, ao discursar perante o Congresso estadunidense, Trump nomeou Rússia e China como países "rivais" dos Estados Unidos, não deixando mais dúvidas sobre a principal oposição que se desenha para o século XXI.
Diante de uma nova política de contenção empregada pelas potências do mar, portanto, russos e chineses não tiveram outra escolha senão atuar em sincronia para a promoção de uma Eurásia independente e unificada.
Um dos fatores que levou a isso, é preciso lembrar, foi justamente sua preocupação comum quanto à presença da potência hegemônica do mar (os Estados Unidos da América) em lados opostos da massa terrestre Eurasiática, seja pela expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no leste europeu, seja pelos acordos estadunidenses no Leste Asiático com países como Japão, Coreia do Sul e Austrália, por exemplo.
Diante desse contexto, os movimentos de China e Rússia para fortalecer seus laços militares e políticos ao longo dos últimos anos servem como resposta a esse movimento de contenção, historicamente empregado pelos anglo-saxões e baseado na hegemonia ocidental que hoje vem se esfarelando.
O presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping, após negociações bilaterais em Moscou
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Washington, Londres, Tóquio e outras capitais podem até estar preocupados com esse desenvolvimento, mas freá-lo já não é mais possível. A parceria sem limites entre russos e chineses, assim como sua cooperação tanto na Eurásia como no plano global, é apenas um dos sinais de que 2023 foi o ano do levante final das potências da terra contra as potências do mar.
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.