Panorama internacional

Ao contrário do Ocidente, Moscou 'olha nos olhos', diz analista sobre parceria entre Rússia e África

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam por que a África é vista como novo palco da disputa entre potências tradicionais e emergentes, e como a parceria com a Rússia contribui para a ascensão do continente como potência tecnológica.
Sputnik
A Rússia vem estreitando sua relação com países do continente africano. Um artigo recente publicado pelo Conselho de Relações Exteriores (CFR, na sigla em inglês), think tank sediado em Nova York, apontou que países africanos vêm celebrando cada vez mais parcerias com Moscou nos âmbitos político, militar e educacional.
A relação de confiança é recíproca, e ficou evidente recentemente, quando bandeiras russas foram vistas em atos no Níger em celebração ao rompimento do país com a França, sua antiga colonizadora.
Essa aproximação, no entanto, é vista com desconfiança pelo Ocidente, que acusa Moscou de tentar desestabilizar o continente africano e ampliar sua base de contestação a potências hegemônicas, fortalecendo a chamada nova ordem multipolar.
A Sputnik Brasil conversou com especialistas para entender quais são as bases da parceria entre Moscou e os países africanos, e como essa boa relação contribui para ambos os lados.

Qual o interesse da Rússia na África?

Para Anselmo Otavio, professor de relações internacionais da África e do Oriente Médio na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), hoje, qualquer país do mundo tem boas razões para manter uma boa relação com nações do continente africano. Ele cita como primeiro exemplo o peso que os africanos têm em votações em dois importantes mecanismos da Organização das Nações Unidas (ONU): a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança.

"Em torno de um terço dos países votantes na Assembleia Geral são africanos. Com isso, dentro do cenário de governança, ela [a África] se torna relevante porque os países buscam conseguir esses votos, seja para conseguir apoio na Assembleia Geral, seja para conseguir diminuir o impacto de algum tipo de sanção", explica o especialista.

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Outro ponto importante, segundo o professor, é o crescimento observado na África nas últimas décadas. Ele destaca que o continente deixou de ser um território marginalizado no cenário global, como era visto na década de 1990, para se tornar um ator central no processo de globalização. Isso colocou países do continente em posição privilegiada, passível de barganhar com diferentes potências em busca dos melhores acordos.

"Qual seria para os países africanos a importância de estar dentro dessa 'disputa' entre potências tradicionais e emergentes? É que dá a possibilidade de barganhar. Então você vai barganhar e escolher aquele que de fato é mais interessante."

Otavio acredita que o alinhamento com Moscou se dá justamente pela busca por uma contraposição à forma de dominação que vem desde o período do imperialismo. Entre os benefícios que essa parceria traz para países africanos, está a cooperação educacional, que garante acesso às universidades russas, e a cooperação militar, seja no treinamento de tropas ou no desenvolvimento de armamentos.
"Sem contar, também, no âmbito da governança. Então, ao mesmo tempo que esses países conseguem garantir apoio à Rússia na Assembleia Geral, o contrário também ocorre. Esses países acabam tendo o apoio da Rússia em suas demandas no Conselho de Segurança. Nesse sentido, você consegue ter uma potência militar, mas ao mesmo tempo um membro permanente do Conselho de Segurança que garante, por exemplo, aos países africanos ter algumas de suas demandas atendidas", argumenta.

Moscou, um parceiro que 'olha nos olhos'

Para José Gabriel Pires, mestrando em ciências militares na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e pesquisador do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) na Escola de Guerra Naval (EGN), o fato de a Rússia não ter um passado colonial na África favorece a relação de Moscou com países do continente como um ator que visa a cooperação.

"A partir de 2019, há um movimento mais acentuado visando uma aproximação estratégica para além do âmbito técnico-militar, que ainda se preserva como carro-chefe nessa dinâmica, com o acontecimento da primeira cúpula Rússia-África, que teve uma adesão maciça de líderes africanos, demonstrando que eles também vislumbram Moscou como um parceiro em potencial que os 'olha nos olhos' como iguais. Essa cúpula resultou em cerca de 92 acordos entre contratos e memorandos de entendimento que, juntos, somaram cerca de 1 trilhão de rublos [cerca de R$ 54,8 bilhões]."

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Ele complementa destacando que, em 2023, ocorreu a segunda cúpula, "já no contexto do conflito russo-ucraniano, cujo elemento naval provocou uma escassez grave no fornecimento de grãos para o mundo".

"Os países africanos, em função da dependência desses grãos, estavam mais vulneráveis a esses movimentos. Assim, a movimentação de Moscou, ao realizar essa segunda edição, garantindo o fornecimento gratuito desses grãos, teve dois objetivos: assegurar o bom andamento das relações com os países africanos e demonstrar que a tentativa ocidental de isolar a Rússia está fracassando, especialmente ao considerarmos os países do Sul Global."

Pires acrescenta que, no contexto histórico, a então União Soviética (URSS) percebeu e apoiou levantes anticoloniais na África, estimulando movimentos de independência. Herdeira da URSS, a Rússia, ao se aproximar da África, pode ajudar o continente a se tornar uma potência no setor tecnológico, acredita o pesquisador.
"A Rússia é um expoente em segurança e defesa, uma área que prospera no avanço tecnológico. O continente africano é o continente com a população mais jovem, uma população que precisará de empregos que tendem a demandar cada vez mais especialização, e precisam se capacitar para lidar com os desafios globais que envolvem temas como automação e inteligência artificial. Embora esteja sofrendo sanções que dificultam ou impossibilitam a aquisição de itens de alto teor tecnológico, como maquinário e semicondutores, a Rússia detém um capital intelectual do qual os países africanos podem usufruir, inclusive, para o desenvolvimento de tecnologias autóctones que visem solucionar problemas que eles conhecem melhor do que ninguém."
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O especialista argumenta que o fato de o continente africano ter uma população jovem significa muita mão de obra e muito mercado consumidor, e diz que "isso, por si só, já seria suficiente para levar as atenções para o continente".

"Mas, para além disso, ou melhor, para ilustrar esse movimento, eu posso citar a ascensão do mercado de cabos submarinos na África, um setor fundamental para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas, que são responsáveis por cerca de 95% das comunicações globais de Internet de alta velocidade via fibra ótica, ditando, de certo modo, o ritmo de crescimento dos países da região. As outras regiões em que esse mercado está em plena ascensão são a Antártica e o Ártico."

Porém, Pires acredita que o motor das relações entre a Rússia e os países africanos "permanecerá sendo a área de segurança e defesa, pois é um setor em que a Rússia é bastante desenvolvida, e um dos que mais interessa aos países do continente africano".

"Mas também posso citar outras áreas, tomando a segunda cúpula [Rússia-África], ocorrida em julho do ano passado, como exemplo. O memorando desse encontro foi bastante extenso, com uma agenda que ia da promoção de mecanismos de cooperação política, no contexto da ONU, ao fortalecimento de diálogos interparlamentares entre congressistas russos e representantes de países africanos; uma vasta agenda de cooperação econômica, com o apoio russo ao ingresso da União Africana no G20, mas também uma gama de acordos de cooperação em áreas como esporte, educação, cultura, saúde, pesquisa acadêmica, além da área ambiental, uma questão extremamente relevante e importante no contexto global."

Qual a contribuição da África na busca pelo multilateralismo?

Questionado sobre o motivo de os analistas estarem considerando o continente africano como o novo palco da disputa geopolítica entre o Ocidente e o Sul Global, Pires diz que a reforma de organismos internacionais para garantir uma maior representatividade de países emergentes está na agenda russa. Para alcançar essa meta, é importante angariar o apoio de países africanos.
"Acredito que seja importante mencionar que a promoção do multilateralismo é parte fundamental do paradigma da política externa russa, conhecida como Doutrina Primakov. Dito isso, a reforma das instituições de promoção do multilateralismo, especialmente da ONU, que por muitos é vista como ineficiente e, especialmente, do Conselho de Segurança, que não representa os interesses de diversos atores, em especial do Sul Global — não há representantes sul-americanos nem africanos, por exemplo — tem estado na agenda de muitos desses países. Iniciativas como o BRICS, que no início de janeiro foi expandido, surgem como fóruns alternativos, mas sem a mesma relevância, inclusive, por não ser o propósito aberto do grupo antagonizar outros fóruns relevantes", afirma o especialista.
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