Panorama internacional

Analistas: guerra às drogas 'modelo USA' aperfeiçoou e deslocou narcotráfico para outros territórios

O estopim da crise de segurança pública no Equador ligou o alerta na região a respeito da fracassada "guerra às drogas", doutrina oficial dos Estados Unidos de combate ao narcotráfico que desde o final dos anos 1960 impera na América Latina, apesar do aumento da violência e do poder do crime organizado.
Sputnik
De um dos países mais seguros da região há quatro anos, o Equador teve mais de 7,5 mil homicídios em 2023, segundo autoridades locais, o ano mais violento da sua história, com uma das maiores taxas de homicídio da América Latina.
Em que pesem as singularidades geográficas, econômicas, políticas e sociais desse país, semelhanças em relação à violência crescente perpetrada por traficantes de drogas são identificadas em todas as nações do Sul Global.
Estudiosos de segurança pública e América Latina ouvidos pela Sputnik Brasil são unânimes ao afirmar que a estratégia exclusivamente focada na repressão fortaleceu o crime organizado:

"Essa lógica tem se mantido intacta, e o que provoca não é o fim do narcotráfico, mas sua depuração, seu aperfeiçoamento, por um lado, e, em segundo lugar, o seu deslocamento", explica o professor do Instituto de Estudos Estratégicos (Inest) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Thiago Rodrigues.

Nesse contexto, vigente há cerca de 50 anos, os Estados Unidos se apresentam como o país consumidor, "na posição de vítima de supostos violadores internacionais", comenta.
Especialista em estudos estratégicos de defesa e segurança, Rodrigues destaca que o aumento da repressão tende a eliminar pequenos grupos ou forçar sua absorção por grupos maiores, que "conseguem se defender do Estado com maior penetração econômica e influência política", ocorrendo o chamado efeito bexiga ou balão, "quando você aperta um lado do balão ou da bexiga e infla o outro lado".
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Mestre em relações internacionais pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), a pesquisadora Beatriz dos Santos Abreu argumenta que o crime organizado e o narcotráfico continuam se fortalecendo, revelando as falhas de uma política de guerra às drogas que "não tem a visão de resolver um problema social em sua estrutura".
Especialista em conflitividade e segurança da América Latina, ela acrescenta que esse cenário tem incrementado o monitoramento e a militarização dos EUA dentro das suas relações com países da América Latina nos últimos anos.

"Um exemplo fatídico de tal realidade é a participação do Departamento de Defesa dos EUA e dos militares dentro da estratégia de segurança que abarca a região", exemplifica a pesquisadora.

O discurso sobre combate ao narcotráfico legitima, segundo ela, uma série de intervenções políticas, diplomáticas, bélicas e econômicas dos EUA na América Latina, assim como a guerra ao terrorismo em alguns países da região e no Oriente Médio.

"As intervenções dos EUA na América Latina que são legitimadas em discursos desse tipo em muitos dos casos possuem interesses voltados ao controle e à influência sobre territórios geoestratégicos", argumenta.

Uma análise histórica dos últimos 20 anos ajuda a compreender ainda a divisão internacional do trabalho dentro do narcotráfico, segundo a especialista:

"Os países do Sul Global são os que mais produzem para os países do Norte manterem seu padrão de consumo de ilícitos. Essa guerra também incentiva o mercado de armas e equipamentos bélicos — a guerra é lucrativa, uma vez que incentiva essa indústria e esse mercado", salienta.

Os estudiosos mencionam que nas últimas duas décadas houve uma ênfase da guerra às drogas na Colômbia, no México, na América Central e no Caribe, como a Iniciativa Andina, o Plano Colômbia, o Plano Patriota e as iniciativas Mérida e Mérida II.
A pressão sobre essas regiões, em que o narcotráfico é historicamente mais ativo, fez com que as rotas já estabelecidas de cocaína, principalmente em direção ao mercado estadunidense e da Europa, ficassem muito congestionadas:

"Quando uma região ou um país de grande atividade narcotraficante passa a ter suas atividades dificultadas pela intensidade da repressão, essas atividades econômicas tendem a mudar de país ou de região", explica Rodrigues.

No mercado ilegal, que envolve a competição de vários atores, o desequilíbrio acarreta geralmente disputas violentas entre os grupos pelo controle de territórios e de rotas, destaca o especialista.
Nesse contexto, os analistas acrescentam que o aprofundamento da desigualdade social e as crises econômicas no continente, nos últimos anos, foram elementos cruciais para detonar o barril de pólvora.
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Superencarceramento e crime organizado: faces da mesma moeda

Os pesquisadores ressaltam que em alguns países, como Brasil e Equador, grupos criminosos se estruturam no sistema penitenciário, lugar de treinamento e de operação e quartel-general do crime organizado:
A superlotação dos presídios, diz Abreu, "dá condições, dentro das penitenciárias, à organização de facções locais" e estrutura uma lógica de crime organizado transnacional, no caso do Equador.
Na prática, agrega a pesquisadora, as práticas repressivas por parte dos policiais só aumentam em territórios marginalizados e contra a "população pobre e racializada".

"Na América Latina, por meio da influência dos EUA, o que se observa é um processo de enrijecimento das políticas para os sistemas penais no continente, que tem relação direta com o aumento da população carcerária e a prisão em massa de consumidores, e não de traficantes alinhados ao crime organizado transnacional", destaca ela.

Rodrigues segue o mesmo raciocínio da colega e afirma que além de prenderem muito, os sistemas de justiça latino-americanos prendem, em sua maioria, pessoas com baixa periculosidade, "peixes pequenos", enquanto os "peixes grandes", as grandes lideranças, sequer figuram no noticiário:

"Os grandes empresários, lavadores de dinheiro, os operadores do sistema financeiro internacional, essas pessoas sequer aparecem. São geralmente brancas, vivem em bairros de luxo e operam o grande sistema financeiro internacional, que não é operado, obviamente, por um rapaz pobre, semianalfabeto, de favela", expõe o professor.

Ações conjuntas e mudança radical na metodologia e na ideologia

Reverter esse quadro não é tarefa fácil, afirmam os entrevistados, mas é possível no longo prazo, se houver uma mudança radical na metodologia e na ideologia das políticas de segurança pública de uma maneira global.

"Prender menos, dar alternativas de profissionalização para esses jovens que são pegos em confronto com a lei, em vez de encarcerá-los em penitenciárias que vão ser verdadeiras escolas do crime", pondera o catedrático da UFF.

Para Abreu, não há solução possível sem que as políticas de enfrentamento ao crime organizado englobem o combate a problemas sociais estruturantes:

"Países latino-americanos a médio e longo prazo poderiam rever tal quadro a partir de maiores investimentos em educação, pela redução de desigualdades sociais e por maiores ofertas de emprego à população jovem", defende ela.

Outro ponto defendido pela pesquisadora é que as políticas internacionais de combate ao tráfico de drogas atinjam também os países consumidores e do Norte, na tentativa de frear padrões de consumo, e políticas globais devem ser implementadas para impedir a estruturação de paraísos fiscais.
Ela aborda ainda a necessidade de países da América Latina agirem de forma conjunta, integrada e autônoma contra o crime organizado em ações transnacionais, seja nas rotas terrestres, marítimas ou aéreas.
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