Panorama internacional

'A dama que mente': o controverso legado de Condoleezza Rice

Em 26 de janeiro de 2005, Condoleezza Rice foi nomeada para o cargo de secretária de Estado em Washington. A nomeação fez dela a primeira mulher afro-americana a ocupar a posição, mas também serviu para catapultar ao poder uma das figuras mais polêmicas da política externa estadunidense nos últimos anos.
Sputnik
Como secretária de Estado (cargo equivalente ao de ministro das Relações Exteriores nos Estados Unidos), ela substituiu nada mais nada menos do que Colin Powell, o mesmo que mentiu desavergonhadamente perante o Conselho de Segurança da ONU em fevereiro de 2003, alegando que o Iraque produzia em segredo armas químicas.
A encenação descarada de Powell não foi suficiente para convencer os demais membros do Conselho de Segurança, que à época votavam resoluções com o intuito de promover uma solução diplomática (em vez de militar) para a crise internacional que se formava em torno do Iraque de Saddam Hussein. Na época, Rice também se lançou a enganar o público americano a respeito do assunto.
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Em 18 de janeiro de 2003, o jornal The Washington Post alegava que Condoleezza Rice desempenhou um papel significativo na formação das opiniões políticas do então presidente, George W. Bush, sobre a necessidade de invadir o país árabe. Rice foi sem sombra de dúvidas uma apoiadora declarada da guerra no Iraque em 2003.
Ainda que Bagdá tivesse apresentado à ONU uma declaração sobre a inexistência de armas de destruição em massa no país, Condoleezza Rice (enquanto conselheira de Segurança Nacional) publicou um artigo de opinião em janeiro de 2003 no jornal The New York Times intitulado "Por que sabemos que o Iraque está mentindo?" ("Why We Know Iraq Is Lying?"). Rice alegava, levianamente, que o Iraque não havia se desarmado.
Na visão de Condoleezza Rice, o comportamento do Iraque nos anos anteriores não suscitava confiança e, portanto, a comunidade internacional não deveria acreditar nas promessas de Bagdá. Ela afirmava, assim como George W. Bush, que Saddam Hussein se comprometeu a manter e ocultar as suas armas de destruição em massa, impedindo o trabalho dos inspetores internacionais. Quanto ao documento de 12.200 páginas apresentado pelo Iraque à ONU a respeito da inexistência de tais armas, Rice optou por ignorá-lo, chamando-o de fraudulento.
O então presidente dos EUA, George W. Bush, beija a então secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, durante cerimônia no Departamento de Estado dos EUA. Washington, D.C., 15 de janeiro de 2009
Por certo, Condoleezza Rice desempenhou um papel fundamental na construção do argumento de que o regime de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, o que justificaria a intervenção militar americana no Oriente Médio. No entanto, Rice, Colin Powell (seu antecessor como secretário de Estado), George W. Bush e toda a administração americana acabaram indelevelmente descreditados perante a comunidade internacional após a invasão, pois não foram encontradas evidências sólidas que corroborassem as alegações de que o Iraque possuía armas químicas.
Essa situação gerou não apenas a trágica perda de centenas de milhares de vidas humanas, mas também contribuiu para ampliar a instabilidade na região do Oriente Médio, com impactos que são sentidos até hoje. Para além disso, a atuação de Condoleezza Rice no cenário internacional durante o período de 2005 a 2009 (quando trabalhou como secretária de Estado) também é alvo de críticas por outros motivos importantes. Especialmente no que diz respeito à sua postura em relação às práticas de tortura e à controversa Diplomacia Transformacional, que visava expandir a democracia estadunidense para as demais partes do mundo.
Quanto às práticas de tortura (como a famosa manobra de afogamento simulado, que aparece de quando em quando em alguns filmes americanos) e outras formas de tratamento cruel e degradante, Rice acreditava que se tratava de ações justificadas, se fosse para obter informações relevantes para a segurança nacional dos Estados Unidos.
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Não é preciso dizer que tais práticas de tortura implementadas pelos militares americanos violavam princípios fundamentais de direitos humanos, o que gerou um justo repúdio por parte da comunidade internacional, manchando a reputação de Washington no cenário global. Rice, no entanto, nunca pareceu estar preocupada com essas questões.
Em relação à exportação da democracia para outras partes do globo, Rice coadunava com o proselitismo político neoconservador estadunidense, que entendia ser necessário exportar os valores civilizacionais dos Estados Unidos para outros povos, ensinando-os de forma professoral como deviam viver ou se comportar.
Essa abordagem enfrentou desafios quando o Hamas obteve a maioria nas eleições palestinas em 2006 (apenas um ano depois de Condoleezza Rice assumir o cargo), e quando países influentes como Arábia Saudita e Egito, que contavam com o apoio dos Estados Unidos, mantiveram seus sistemas autoritários, o que demonstrava a hipocrisia da administração americana.
A então secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, encontra-se com o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, em 19 de setembro de 2009
Não obstante, o período em que Condoleezza Rice esteve à frente do Departamento de Estado americano foi um dos mais lucrativos para o complexo industrial militar. Afinal, foram dezenas de bilhões de dólares em armas fornecidos pelos Estados Unidos ao Oriente Médio entre os anos de 2005 e 2009, segundo relatórios da própria Condoleezza Rice.
Os principais beneficiários desse fornecimento foram países como Arábia Saudita, Egito, Kuwait, Bahrein, Catar, Omã e Emirados Árabes Unidos, todos aliados da administração americana na região, além, é claro, de Israel. A propósito, a postura de Rice em relação à questão Israel-Palestina também era bastante controversa.
Sua abordagem, inegavelmente favorável a Israel, não visava encontrar uma solução equitativa para o conflito. No período, Washington vinha promovendo um aumento de quase 25% na assistência militar a Israel, prometendo atingir a cifra de 30 bilhões de dólares até o ano de 2010. A falta de um compromisso claro de Condoleezza Rice e da administração americana com a promoção da paz na região contribuiu para a perpetuação das tensões e de crises, dificultando ainda mais a situação no Oriente Médio.
Em suma, as políticas de Condoleezza Rice durante seu período como secretária de Estado deixaram um legado não só complexo como trágico. Suas decisões em relação à Guerra do Iraque, às práticas de tortura, à questão palestina e a outros temas fundamentais foram marcadas por controvérsias e inverdades.
A análise crítica dessas políticas, por sua vez, talvez seja suficiente para afirmar que Condoleezza Rice será lembrada no futuro não como a primeira mulher afro-americana a ocupar o cargo de secretária de Estado, mas sim como a "dama que mente".
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.
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