Participação feminina nas Forças Armadas desmistifica o estereótipo de sexo frágil, dizem analistas
16:46, 1 de fevereiro 2024
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas traçam um panorama da história da participação das mulheres nas Forças Armadas desde o Brasil Império e explicam por que a presença feminina nas fileiras militares ainda gera certa resistência.
SputnikA participação feminina nas Forças Armadas brasileiras entrou no cerne de uma polêmica após vir à tona, na semana passada, a informação de que o advogado-geral da União, Jorge Messias, se posicionou contra o fim das restrições à atuação das mulheres em certas atividades militares.
O posicionamento de Jorge Messias foi manifestado em ofício enviado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator da ação que exige o fim das barreiras à participação feminina no Exército.
No documento enviado a Moraes, Messias se coloca contra as ações de inconstitucionalidade enviadas anteriormente ao STF pela subprocuradora-geral da República, Elizeta Ramos, que pedem o
fim das restrições à participação feminina em atividades das
Forças Armadas e da Polícia Militar.
No documento enviado ao STF, divulgado pela mídia, Jorge Messias afirma que o militar deve apresentar "resiliência física, intelectual, moral e emocional para enfrentar as agruras do treinamento" e estar "apto a operar em qualquer região do país, em diferentes biomas (selva, Caatinga, montanha, Pantanal), por períodos prolongados e em níveis variáveis de enfrentamento". O caso gerou controvérsia e aguarda a publicação de um relatório por Moraes e a convocação de um julgamento em plenário da Corte.
Segundo
dados do Ministério da Defesa,
atualmente há 33.960 mulheres integrando as
Forças Armadas, sendo 13.009 no Exército, 8.413 na Marinha, 12.538 na Aeronáutica, além de 482 mulheres entre servidoras civis, militares, terceirizadas e estagiárias que trabalham no ministério.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas traçam um histórico da atuação feminina nas fileiras das Forças Armadas e explicam por que a participação das mulheres em atividades militares ainda causa resistência.
Quando as mulheres entraram no Exército brasileiro?
Jéssica Gonzaga, professora e doutora em história, política e bens culturais pela Fundação Getulio Vargas (FGV), explica que as mulheres foram inseridas, pela primeira vez, no quadro do Exército brasileiro em 1992, mas a atuação feminina em combate é muito anterior a essa data.
"A história das mulheres guerreiras no Brasil antecede a formação do Estado nacional brasileiro. Nas lendas dos povos originários, é sabido sobre as mulheres icamiabas ou amazonas, hábeis manejadoras de arco e flecha. Após a chegada dos portugueses, o Brasil sofreu diversas invasões europeias, dentre as quais destaca-se a ocupação de Pernambuco pelos holandeses (1630–1654). Durante o movimento reconhecido como Insurreição Pernambucana (1645–1654), na famosa Batalha dos Guararapes [mito da formação do Exército brasileiro], lutaram bravas mulheres: Clara Camarão, liderança feminina da tribo Tejucupapo, e a senhora de engenho Ana Pais", argumenta a professora.
No que se refere à presença feminina nas Forças Armadas do Estado brasileiro, afirma Jéssica Gonzaga, "a historiografia militar reconhece Maria Quitéria de Jesus (1792–1853) como a primeira participação de uma mulher em combate durante as guerras de independência do Império do Brasil, em 1823".
Ela conta que a história de Maria Quitéria é interessante porque na época as mulheres não possuíam autorização para o alistamento voluntário durante o processo de luta pela independência.
"Diante disso, [Maria Quitéria] obteve auxílio de sua irmã, Teresa, que além de cortar seus cabelos, emprestou a farda de seu marido, José Cordeiro de Medeiros. Maria Quitéria ingressou no regimento de artilharia com o nome de seu cunhado."
Jéssica Gonzaga explica que Maria Quitéria acabou sendo descoberta semanas depois. No entanto, soldados com a mesma aptidão que ela para o manejo das armas eram escassos, e seu comandante decidiu mantê-la no Exército.
"Ela foi transferida para o Batalhão dos Periquitos, e em seu uniforme foi acrescentado um saiote. Entre seus diversos feitos, é importante destacar sua atuação no combate de Itapuã, onde atacou uma trincheira inimiga, prendendo diversos portugueses e garantindo a honra de primeiro cadete."
A especialista cita outras mulheres que tiveram participação importante na história do Império do Brasil, como Anita Garibaldi (1821–1849), na Guerra dos Farrapos (1835–1845), e outras figuras menos conhecidas.
"Na maior guerra da América do Sul, a Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai (1864–1870), a historiografia militar está revelando diversas mulheres que defenderam o país. Destaco uma figura pouco conhecida, Maria Francisca da Conceição, conhecida como Maria Curupaiti."
Ela explica que Maria Curupaiti chegou ao teatro de operações do Exército acompanhando seu marido marinheiro, que acabou morto na operação naval que ficou conhecida como passagem de Curupaiti.
"Embora tenha sofrido a perda [do marido], ela permaneceu lutando contra os paraguaios. Somente quando recolhida ao hospital — devido aos ferimentos sofridos após uma luta de espada —, o Exército descobriu que esse soldado era uma mulher. É importante lembrar de Ludovina Portocarrero, líder de 70 mulheres que resistiram em defesa do forte Coimbra diante da invasão do Paraguai no Mato Grosso e, também, a mãe do futuro primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca, Rosa da Fonseca (1802–1873), [figura exaltada entre militares]."
Já na Segunda Guerra Mundial, a especialista explica que o Exército brasileiro foi engajado por meio da Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada em 1943, que embarcou para a Itália em 1944, com o Quadro de Enfermeiras de Emergência da Reserva do Exército (QUEERE), que contava com 67 enfermeiras hospitalares e seis enfermeiras da Força Aérea.
Quando foi oficializada a participação feminina nas Forças Armadas?
Em tempos de paz, Jéssica Gonzaga afirma que as Forças Armadas brasileiras iniciaram a análise sobre a inserção da mulher, com destaque para o protagonismo da Marinha do Brasil.
"No mundo impactado pela Guerra Fria no Brasil, desde 1953, havia projetos para a criação do Corpo Feminino da Armada. Finalmente, em 7 de julho de 1980, por meio da Lei nº 6.807, foi criado o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha. Em 1982, a Força Aérea criou o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica, formado pelo Quadro Feminino de Oficiais (QFO) e pelo Quadro Feminino de Graduados (QFG), este último composto por sargentos e cabos. No Exército, em 1992, inseriu-se pela primeira vez pessoas do sexo feminino no quadro do Exército brasileiro."
Desde então, as mulheres permanecem lutando por novas conquistas no âmbito das Forças Armadas.
"No caso da Marinha, minha especialidade, destaco a presença das mulheres na chefia do destacamento do Posto Oceanográfico da lha da Trindade, subchefia da Estação Antártica Comandante Ferraz; a capacitação das mulheres como mergulhadoras e paraquedistas; o comando de elementos de tropas de fuzileiros navais, além da atuação em missões de paz sob a égide das Nações Unidas", afirma Jéssica Gonzaga.
A importância das mulheres nas instituições militares
Mariana Zamboni Carluccio, mestre e doutoranda em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Operações de Paz, afirma, em entrevista à Sputnik Brasil, que a Marinha, de fato, foi a força pioneira na inclusão feminina.
"A década de 1980 marcou um maior protagonismo nesse campo, que até então permanecia fechado às mulheres. A Marinha se tornou a pioneira, em 1980, no recrutamento de mulheres ao criar o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha, no qual as mulheres exerciam funções de manutenção eletrônica."
Ela acrescenta que, dois anos depois, foi a vez da Aeronáutica, com a criação do Corpo da Reserva Feminina da Aeronáutica, e "em 1992 ocorreu a entrada de mulheres no Exército, quando puderam ingressar na Escola de Administração do Exército (EsAEx), que atualmente é chamada de Escola de Formação Complementar (EsFCEx), e fazer parte do Quadro Complementar de Oficiais, junto aos homens".
Porém ela aponta avanços muito importantes na promoção de inclusão de mulheres a partir de 2014.
"Em 2014, a Escola Naval do Rio de Janeiro recebeu a primeira turma de aspirantes mulheres, além de contar com a única oficial general, a contra-almirante Dalva Mendes. Em 2018, a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) recebeu 33 cadetes mulheres oriundas da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) para o ensino militar bélico da força, porém só podem se especializar nas atividades de Intendência, Material Bélico e Comunicações, que não demandam o manuseio de equipamentos pesados. Entre 2014 e 2016, houve um aumento significativo do ingresso das mulheres nas Forças Armadas, boa parte devido à participação em operações de paz."
Como é a carreira militar para mulheres?
A Rússia tem mulheres em combate em suas fileiras desde os tempos da União Soviética, com participação feminina no atual conflito ucraniano. No Curdistão, destacamentos femininos da Unidades de Proteção Popular (YPG, em curdo), que chegaram a contar com 24 mil combatentes, foram cruciais no enfrentamento ao Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países) no início da guerra na Síria, em 2013. Israel também permite a participação feminina em seus quadros militares. Tais exemplos desmistificam o estereótipo do sexo frágil associado às mulheres, conforme apontam as especialistas.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Kethlyn Gabi Winter da Silva, pesquisadora do Laboratório de Análise Política Mundial (Labmundo) e do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), afirma que, de modo geral, o papel da mulher nas Forças Armadas é historicamente associado ao cuidado da família.
"Devido ao estereótipo do temperamento feminino como um 'sexo frágil', delicado e pacífico, atribuiu-se o papel de esposa, sem que ela pudesse fazer parte diretamente da vida militar."
Assim como Jéssica Gonzaga, Kethlyn Silva destaca o exemplo de Maria Quitéria e das enfermeiras que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial, e reconhece o avanço da participação feminina nas últimas décadas. Porém, ela afirma que, em linhas gerais, as mulheres ainda entram nas forças militares limitadas a funções administrativas.
Ela avalia que a posição do advogado-geral da União, Jorge Messias, "em restringir a participação feminina em certas atividades militares pode ser analisada como um reflexo da hesitação em desmasculinizar a estrutura das Forças Armadas".
"Essa postura evidencia a contínua dificuldade do governo em concretizar efetivamente a diversidade. A inserção de mulheres nas Forças Armadas é um elemento crucial da liberdade individual, além de representar os princípios fundamentais de igualdade, diversidade e democracia."
Kethlyn Silva destaca que "as Forças Armadas estão diretamente conectadas ao tecido social, o que quer dizer que estão intrinsecamente ligadas não só à soberania, mas também à construção de direitos de cidadania".
"Por isso, a inclusão de mulheres combatentes não é apenas uma questão de igualdade de gênero, é também um fator importante na definição das relações civis e militares."
Jéssica Gonzaga, por sua vez, cita o livro "A guerra não tem rosto de mulher", escrito pela belarussa Svetlana Alexijevich, que traz à tona histórias de soldados mulheres soviéticas que lutaram na Segunda Guerra Mundial.
"A autora questiona os motivos pelos quais a história da guerra é contada sob o ponto de vista masculino. Nesse sentido, é preciso entender as características da sociedade, tendo em vista que elas justificam a marginalização feminina da classe militar por tanto tempo", explica Jéssica Gonzaga.
Ela acrescenta que, "no âmago da organização social, verificam-se relações de poder que influenciam diretamente nas relações de gênero".
"À mulher foram estabelecidos papéis a serem desempenhados, a fim de garantir a sobrevivência da sociedade. A singularidade feminina de conceber a vida justifica a necessidade de protegê-las para preservar as responsáveis pela produção de indivíduos que serão, mais tarde, os trabalhadores e inclusive os guerreiros. Portanto, as suas características físicas, biológicas e cognitiva do gênero feminino nunca foram o impeditivo para a luta, mas sim o discurso e o lugar atribuído à mulher na organização social. A construção da imagem da mulher como 'sexo frágil, sensíveis, pacíficas, voltadas para a maternidade, a educação e formação dos filhos' é, atualmente, o principal argumento para fundamentar as restrições da presença feminina em ações ofensivas", afirma Jéssica Gonzaga.
22 de dezembro 2023, 17:17
Kethlyn Silva argumenta que "o condicionamento físico, que é um argumento contrário a participação feminina nas Forças Armadas e que veio forte nos posicionamentos recentes, na verdade é algo extremamente pessoal".
"A presença de mulheres em situações de combate em muitos países como citado, na época da União Soviética, na Ucrânia, no Curdistão, em Israel, evidencia que a questão não é tão problemática como estão abordando", explica Kethlyn Silva.
"Mesmo na história brasileira, o caso da Maria Quitéria é um exemplo, como o próprio Exército reconhece, de bravura que não afetou negativamente a força na zona de combate. Acredito que o receio em aceitar mulheres nessas funções tem mais a ver com uma hierarquia na divisão social, entrelaçada entre o sexo feminino e o sexo masculino. Ou seja, é um receio de ver mulheres avançando em posições de liderança. A meu ver, a atenção deveria ser direcionada para o desafio enfrentado por mulheres em cargos de combate: o assédio", complementa.
Mulheres em cargos de alta patente coíbem casos de assédio entre militares
Kethlyn Silva aponta que o caráter das Forças Armadas tem como fundamento a hierarquia, que muitas vezes é confundida de maneira arbitrária, o que contribui para casos de assédio dentro das Forças Armadas.
"O ethos militar se fundamenta nos pilares da hierarquia e disciplina, fundamentais para o funcionamento das Forças Armadas. A meu ver, o cerne da questão da violência sexual está relacionado a uma certa arbitrariedade dentro das Forças Armadas, que é, muitas vezes, erroneamente interpretada como parte dessa estrutura hierárquica. No geral, esse é um ambiente predominantemente masculino, que vem mudando de maneira gradativa em termos de inserção da participação feminina. Essa dinâmica gera apreensão entre essas mulheres soldados para denunciarem casos de assédio e violência sexual, por receio de possíveis punições e, por vezes, pela descrença na eficácia das medidas de resolução existentes. Isso porque, tendo em vista o pilar da hierarquia, muitas vezes existe um encobrimento entre os militares", explica a especialista.
Ela afirma que o tema do assédio necessita ser mais abordado e que "é essencial pensar em estratégias que realmente previnam e combatam a violência sexual, ao mesmo tempo que se faz essa inserção feminina nas Forças Armadas".
"Acredito que esse é um tema que precisa ser mais abordado e que é essencial pensar em estratégias que realmente previnam e combatam a violência sexual, ao mesmo tempo que se faz essa inserção feminina nas Forças Armadas. A existência de postos femininos no alto escalão, por exemplo, é um mecanismo que pode vir a impactar a mudança de perspectiva na efetivação da disciplina e contribuir de modo mais eficaz para a redução e solução de casos de assédio e violência sexual dentro das forças."