EUA usam eleições como pretexto para se intrometer em questões internas da Venezuela, diz analista
17:35, 13 de fevereiro 2024
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialista diz que decisão de Washington de retomar as sanções contra a Venezuela, aliviadas em outubro, nada tem a ver com a decisão da Justiça venezuelana de barrar a candidatura de dois opositores, uma vez que os candidatos já haviam sido condenados.
SputnikA decisão dos Estados Unidos de impor sanções ao petróleo russo desencadeou uma escassez da commodity no mercado americano, bem como em países do continente europeu que apoiaram a orientação de Washington.
Para contornar a situação, o governo do presidente americano, Joe Biden,
decidiu relaxar as sanções ao comércio com a Venezuela, dona da maior reserva de petróleo do mundo, estimada em 300 bilhões de barris. A decisão colocou o governo de Nicolás Maduro em posição de protagonismo geopolítico,
uma vez que a Venezuela passou a ser considerada a chave contra a escassez de petróleo.
Posteriormente, após o Tribunal Supremo de Justiça venezuelano oficializar o impedimento da candidatura de dois opositores, María Corina Machado e Henrique Capriles, às eleições deste ano, Washington anunciou a retomada das sanções, acusando Caracas de descumprir os
Acordos de Barbados, assinados em outubro de 2023, que
estabeleciam regras para as eleições presidenciais venezuelanas.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Darc Costa, presidente da Câmara de Comércio Brasil-Venezuela, explica como fica a situação da Venezuela após o relaxamento e a posterior retomada das sanções.
Costa destaca que as sanções americanas contra o país não miram apenas o setor de energia, mas todo o comércio com a Venezuela.
"A proibição é de atuar comercialmente com a Venezuela. As empresas americanas estão proibidas pelo governo americano de atuar comercialmente com a Venezuela, tanto que as primeiras a serem sancionadas são as empresas que trabalham com mineração de ouro", explica.
Ele acrescenta que os Estados Unidos têm como objetivo tolher comercialmente a Venezuela, e usam como alegação os Acordos de Barbados. Porém, ele aponta que os opositores barrados de disputar o pleito deste ano já estavam condenados pelo Tribunal Supremo de Justiça antes do acordo, por terem se envolvido em atos de contestação e conspiração contra o governo, motivo que levou à proibição de suas candidaturas.
Costa afirma que a retomada das sanções, neste 13 de fevereiro, vai afetar o parque de produção de petróleo e, como consequência, toda a indústria de petróleo e gás do país.
"A Venezuela sempre dependeu muito da indústria de bens de capital dos Estados Unidos para dar suporte ao seu parque de produção de petróleo. Então peças e outros elementos utilizados na exploração do petróleo vêm todos dos Estados Unidos. Com o bloqueio, a indústria de petróleo e gás da Venezuela fica, de certa forma, bastante afetada, porque não tem suprimentos nem peças para repor, no caso as peças que se desgastam nessa produção de petróleo e gás. Isso causa, então, uma queda na produção de petróleo da Venezuela."
Por que a Venezuela entrou em crise econômica?
Costa lembra que a crise econômica da Venezuela é anterior às sanções americanas, que foram aplicadas em 2017, no governo Barack Obama. Ele afirma que a crise tem como raiz "a recessão em que a economia venezuelana entrou a partir de 2013 pela queda do preço das commodities a nível mundial".
"O petróleo era cotado a US$ 100 [cerca de R$ 500] o barril […], caiu para 30 dólares [cerca de R$ 150]. Isso teve uma repercussão direta nas contas externas da Venezuela."
Porém, ele destaca que as sanções contribuíram consideravelmente para aprofundar a crise econômica, minando a produção de petróleo e fazendo o produto interno bruto (PIB) do país cair 70%.
"Com as sanções, a produção de petróleo, que variava entre um milhão e meio e dois milhões de barris, caiu para 700 mil barris. Então, a partir de 2017, as sanções afetaram bastante as exportações da Venezuela em termos de quantidade de produtos exportados, porque em termos de preço já tinham sido prejudicados desde a crise de 2013."
Quando os Estados Unidos aplicaram as sanções, afirmaram que a medida tinha caráter ideológico, uma vez que Washington considerava que não existia democracia na Venezuela. A questão, no entanto, ficou de lado diante da escassez de petróleo.
Questionado sobre como fica a postura americana diante disso, Costa afirma que "o governo americano adota medidas que a sua hegemonia permite".
"Ela [hegemonia americana] pratica a defesa do discurso do sistema que ela defende, e esse sistema diz ser democrático e capitalista, alega que a Venezuela não era nem democrática, nem capitalista, e por isso pratica uma política de contingenciamento, de sanção à Venezuela."
Ele acrescenta que isso não ocorre apenas com a Venezuela, e cita Cuba, sancionada desde a década de 1960, e a Rússia, sancionada após a operação militar especial na Ucrânia. Segundo Costa, esse poder de aplicar sanções do governo americano é calcado na hegemonia do dólar, cada vez mais questionada por outros países.
"O governo americano tem o poder de sancionar os outros porque ele detém, depois de Bretton Woods, o monopólio, praticamente, das relações de comércio no mundo, que é exercida pelo dólar. O dólar é uma moeda emitida pelos Estados Unidos, e eles, tendo o dólar, têm o poder de 'senhoragem', o poder de estabelecer regras de comércio para os outros países."
Ele complementa afirmando que os Estados Unidos decidiram aplicar sanções à Venezuela por considerar o país hostil e por não concordar com a forma como ele é governado.
Que benefícios o relaxamento de sanções trouxe para a Venezuela?
Costa afirma que, desde outubro, quando as sanções à Venezuela foram relaxadas, Caracas conseguiu retomar as exportações de petróleo, bem como acessar ativos nos Estados Unidos que estavam bloqueados pelas sanções.
"Mas o mais relevante é que eles entraram no mercado americano adquirindo as peças que eles necessitavam para repor o parque explorador de petróleo que a PDVSA tem na Venezuela. Então eles tiveram ganhos significativos nisso, além de que os Estados Unidos começaram a comprar outras coisas que não petróleo e gás. Falam muito na indústria petroleira, mas os Estados Unidos têm empresas de mineração de ouro e diamante na Venezuela, que estão adquirindo ouro e diamante da Venezuela e pagando o Tesouro venezuelano por essa aquisição."
Ele sublinha que as empresas de mineração são justamente a prioridade das atuais sanções.
"Para as empresas que compram óleo e gás, o prazo é mais dilatado, eu acho que é até abril para as que realizam essas operações."
Os Estados Unidos podem intervir militarmente na Venezuela?
Washington tem um histórico de intervenções militares em países estrangeiros, incluindo grandes produtores de petróleo, como Iraque, Líbia e Síria. Questionado sobre a chance de algo parecido acontecer com a Venezuela, ele afirma descartar a possibilidade. Isso porque uma medida dessa magnitude poderia resultar em uma guerra regional.
"Eu acho muito difícil que isso ocorra, pelas circunstâncias de que seria uma intervenção em um país de uma dimensão razoável e com implicações muito fortes para a geopolítica do hemisfério ocidental. Então eu acho muito difícil que haja uma intervenção militar, como eu acho difícil uma intervenção militar na guerra da Ucrânia, porque lá levaria a uma guerra mundial, e aqui levaria a uma guerra regional."
Qual a possibilidade de a Venezuela retornar ao Mercosul?
A Venezuela entrou para o Mercosul em 2012 e foi suspensa do bloco em 2017, por uma decisão conjunta de seus membros. Questionado sobre quais as chances de o país retornar ao Mercosul no curto prazo, especialmente após declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendendo o diálogo com Caracas, Costa é categórico em afirmar que não enxerga chance disso no momento.
"Acho que não, em decorrência do fato de que no Mercosul existem governos que são abertamente contrários ao atual governo da Venezuela, como são o governo do Uruguai e o governo da Argentina. Eles também praticam o mesmo tipo de visão que o governo dos Estados Unidos com respeito à Venezuela."
Recentemente, o porta-voz do governo venezuelano, Héctor Rodríguez, afirmou que os Estados Unidos devem
deixar Caracas resolver seus problemas internos pelas vias democráticas. Na ocasião, Rodríguez disse que a Venezuela pode discordar de coisas que se passam nos Estados Unidos, "mas elas são questões soberanas dos Estados Unidos". A declaração foi dada em resposta ao anúncio de Washington da retomada das sanções por conta da proibição das candidaturas de Capriles e Machado,
e foi considerada uma forma velada de Caracas apontar a intromissão dos Estados Unidos em assuntos internos do país.
Questionado sobre se os Estados Unidos de fato estão se metendo em questões internas da Venezuela, Costa afirma não ter dúvidas.
"Claro que estão. Quando você faz uma sanção a um país qualquer, para atender a algum objetivo de natureza política, você está intervindo nos negócios desse país. Aliás, isso contraria a nossa política, a política do Brasil de não intervir nos negócios internos de outros países. Essa é a política tradicional do Brasil, aquela que ficou [de legado] do Barão do Rio Branco e que consta na Constituição. O Brasil não fará intervenção em assuntos políticos de outros países."
Sobre a retomada de laços com o Brasil, após o distanciamento vivenciado no governo de Jair Bolsonaro, quando a Venezuela era demonizada e apontada como um exemplo negativo do que o Brasil poderia se tornar com gestões de esquerda, Costa destaca que a reaproximação já está em curso.
"Pelo que eu sei, já o assessor especial da Presidência da República para assuntos de relações internacionais, que é o ex-chanceler Celso Amorim, esteve duas vezes na Venezuela, inclusive foi testemunha dos Acordos de Barbados em outubro. Então o governo brasileiro tem tido com o governo venezuelano uma proximidade muito maior do que tinha no governo Bolsonaro", explica.
"E esse discurso de que o Brasil pode virar uma Venezuela é de natureza política. Da mesma maneira como os que acreditam na política petista alegam que o Brasil, agora, pode virar uma Argentina, com o [Javier] Milei lá [caso Bolsonaro retorne ao poder]. Mas esse é um discurso de natureza política, o Brasil não vai virar nunca uma Venezuela porque o Brasil é o Brasil. E nunca vai virar uma Argentina porque o Brasil é o Brasil. Tudo isso é discurso de natureza política, é discurso para criar no imaginário coletivo a ideia de que há uma ameaça pairando sobre o país, de um sentido ou de outro", complementa.
Como o governo venezuelano lida com a questão da migração?
Desde o agravamento da crise venezuelana, imagens de pessoas deixando o país e migrando para vizinhos como Brasil, Colômbia e Chile foram veiculadas constantemente nos noticiários. Questionado sobre como Caracas enxerga o problema da migração, Costa afirma que não pode responder pelo governo venezuelano, mas destaca que a Venezuela não é a única a lidar com o problema.
"A questão da saída dos venezuelanos da Venezuela é a única possibilidade que muitos desempregados veem de poder continuar vivendo. Mas isso não é um problema que afeta só a Venezuela, não, basta ver o que está acontecendo no Texas agora, nos Estados Unidos, pela migração de latino-americanos para dentro do espaço norte-americano. A situação de crise da América Latina leva as pessoas a procurarem lugares onde elas possam continuar vivendo. O Brasil é um país privilegiado em relação a isso. Existe migração no Brasil, mas ela não é […] tão ostensiva quanto aquela que acontece no México, nos países da América Central, nos países latino-americanos de uma forma geral."
Qual a relação comercial da Venezuela com Brasil e Rússia?
Costa menciona a relação comercial entre Brasil e Venezuela, destacando que "o Brasil vende muito alimento à Venezuela", além de máquinas e motocicletas produzidas na Zona Franca de Manaus. Porém ele afirma que as relações de comércio entre os países, que chegaram a ter um superávit de US$ 5 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões), caíram muito desde o início da crise venezuelana.
"O Brasil tinha uma relação comercial com a Venezuela muito grande em 2006, 2007, 2008. Exportava para a Venezuela também muita proteína de boi. Exportava até boi vivo. Até búfalo vivo foi para a Venezuela de avião", afirma Costa.
Já a relação entre Caracas e Moscou, ele aponta que segue muito boa, com a Rússia se tornando um fornecedor de material bélico para a Venezuela, além de peças e equipamentos para a indústria petrolífera do país.
"Faz sentido a Venezuela ter um relacionamento com a Rússia, na medida em que ela está, de certa forma, desgastada com os países chamados ocidentais. Não é só a Rússia, não. A China tem também uma presença grande na Venezuela, especialmente na compra de petróleo. A Índia também compra [petróleo da Venezuela]", destaca o especialista.