Crise diplomática entre Brasil e Israel pode afetar a agenda da cúpula do G20? Analista explica
17:29, 19 de fevereiro 2024
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas discutem como a crise diplomática entre Brasília e Tel Aviv pode impactar a cúpula do G20, e quais os principais temas a serem tratados no evento.
SputnikO Brasil vai sediar nesta semana, entre os dias 21 e 22, no Rio de Janeiro, um encontro de chanceleres que servirá como uma prévia da cúpula do G20, marcada para novembro, também no Rio.
A reunião ocorre em meio a uma
crise diplomática entre Brasil e Israel, devido à declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dada no último domingo (18), comparando a ofensiva israelense na Faixa de Gaza ao Holocausto.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicam qual a importância para o Brasil em ser sede do evento, e que impactos a crise diplomática pode ter na cúpula de novembro.
Que impactos a rusga entre Brasil e Israel pode ter na cúpula do G20?
Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), afirma que ainda é cedo para saber quais consequências a crise diplomática entre Brasil e Israel pode ter sobre a cúpula do G20 e destaca o fato de outras lideranças internacionais não terem se posicionado sobre o tema.
Ela acrescenta que, "do ponto de vista da política externa brasileira, todas essas falas têm sido ruins para o governo, que busca um protagonismo, que se coloca como um país que possa intermediar situações de conflito e ser capaz de ser a solução para a busca de um cenário de paz e estabilidade".
"Ela [a declaração de Lula] tem um efeito doméstico, tem um efeito nas relações bilaterais com Israel, mas também tem um questionamento sobre para onde vai o Brasil e qual tipo de liderança que o Brasil quer ter nessas agendas internacionais importantes."
A professora aponta que a falta de posicionamento de outras lideranças em relação à crise diplomática mostra que o assunto está sendo tratado como uma questão bilateral.
"Mas, nos bastidores, a percepção, pelo que a gente acompanha, é de que há uma desconfiança sobre o papel e a visão do Brasil frente a todas essas situações e à posição com relação a Gaza. Acho que no caso dessa frase e dessa posição do Lula, tem um agravante aí que coloca também pressão para a reação israelense, que foi a nota do Hamas parabenizando o presidente Lula. […] Isso também gera dentro de Israel uma pressão para que o governo israelense seja mais duro com relação a esse tipo de abordagem e posição internacional."
Denilde argumenta que a visão de Lula é a mesma que tem circulado em grupos anticolonialistas, que vêm criticando Israel por exercer "um poder desproporcional e que sistematicamente não aceita ou viola as regras humanitárias internacionais".
Segundo ela, a declaração de Lula coloca o Brasil ao lado de países como África do Sul e Colômbia, ambos críticos à ofensiva israelense. Ela também destaca o fato de que Lula deu a declaração após uma reunião com lideranças pró-Palestina, o que pode ter influenciado o discurso do presidente.
"Ele estava falando também em um ambiente após a reunião com o primeiro-ministro da Autoridade Palestina, e depois de reuniões com diferentes grupos pró-Palestina, de países que têm uma posição pró-Palestina. Então eu iria no sentido de entender que ele estava refletindo e falando um pouco da percepção que ele ouviu nesses dias que ele esteve entre o Egito e a Etiópia."
Brasil tomou a decisão certa ao abrir mão da presidência do BRICS?
O governo Lula decidiu abrir mão da presidência do BRICS, que foi repassada à Rússia, para se dedicar à presidência do G20. Questionada sobre se essa decisão foi correta, Denilde diz que "foi uma decisão importante, porque o G20, mesmo com essa situação toda, com todo esse desgaste que as falas de Lula têm gerado, coloca o Brasil no centro de um debate com as 20 maiores economias do mundo".
"Você tem um ano de atuação com todos os países que vão vir ao Brasil fazer ações e discussões internacionais, e a gente define a agenda. Então, para o governo brasileiro, é um momento importante de construir dentro daquele objetivo que foi definido no ano passado, de colocar o Brasil na decisão internacional. Não que o BRICS não seja importante, mas aqui você consegue ter uma ação que envolve mais países, inclusive países que estão no BRICS e que não estão no BRICS."
Mudança na governança global pode ter espaço no evento?
Questionada sobre se o Brasil pode aproveitar a cúpula do G20 para fortalecer a defesa da pauta relativa à mudança na governança global, defendida em especial por países do Sul Global, Denilde afirma que essa é "uma agenda mais ambiciosa, que esbarra nos interesses dos diferentes países e nas diferentes estratégias de cada um".
"A China tem uma estratégia, a Rússia tem uma, Estados Unidos e Europa têm outra. Então é uma agenda que é muito mais difícil de caminhar", explica a especialista.
Qual a importância da participação do Brasil no G20?
José Niemeyer, coordenador do curso de relações internacionais do Ibmec, afirma que o fato de o Brasil sediar o evento é importante por ser "um fórum de um grupo de países que representa estratégias nas áreas econômica, política e diplomática".
Sobre o encontro de chanceleres, ele destaca que será um encontro "com muita intenção, mas pouca construção real".
"Na filosofia, a gente chama isso de encontros que têm um caráter mais deôntico, mais subjetivo. Um viés mais idealista das discussões. Agora, de concreto, de absoluto, mesmo que saia um documento, e deste documento algo de concreto, nem sempre é possível você perceber. Porque quando se faz diplomacia, quando se faz política internacional, você tem, no limite, a sobrevivência do Estado na ação moderna e soberana e cada unidade dentro do sistema internacional dos Estados. É muito difícil você ter uma decisão com muita concretude", explica Niemeyer.
"Então a reunião do G20 vai ser uma reunião diplomática, vai dar mídia, que é importante também, mostrar para sociedades nacionais específicas que estão representadas por essas chancelarias que eles estão discutindo, mas de concreto, de ação, você muitas vezes não tem nada, você tem só aquilo que é deôntico, que é o que deveria ser, e não o que é ôntico, que é o que é", acrescenta.
Niemeyer afirma que mais do que o encontro de chanceleres, a cúpula do G20 em novembro pode ser influenciada por eventos que podem ocorrer até a data do encontro. Ele aponta que há três eventos cujo desenrolar nos próximos meses pode influenciar as discussões: o conflito ucraniano, a escalada de violência no Oriente Médio e as tensões entre Venezuela e Guiana.
"Quando você olha o sistema internacional, você tem que perceber onde existe energia sendo produzida. E, infelizmente, está sendo produzida muita energia nesses dois conflitos, nessa terceira possibilidade de conflito. E isso vai influenciar no G20, com toda certeza."
Apesar de cético quanto aos resultados concretos da cúpula, Niemeyer afirma que sediar a cúpula, bem como os eventos que a precedem, coloca o Brasil nos holofotes.
"Quando se faz política, na verdade está se fazendo política interna. É uma questão de política interna também. O palco externo repercute no palco interno. E é claro que o presidente Lula e toda a chancelaria brasileira vão levar para o G20, nessas discussões, nessas trocas de informação e de tentativa de construção de documentos, uma mensagem de paz, de cooperação entre os países, de melhora no relacionamento no comércio exterior, na cooperação econômica."
Segundo o especialista, Lula vai tentar deixar claro que o Brasil
quer uma solução favorável aos conflitos citados.
"Mas também tem algo por trás, que a gente sabe o que é, que o presidente Lula sabe fazer muito bem, usar da presidência da República para fazer política externa e para que isso repercuta também no ambiente interno brasileiro. Nós ainda vivemos um ambiente no Brasil interno, da política interna, que está muito dividido. Há muitas críticas […]. Eu acho que é importante que Lula se mostre como presidente do G20, representando o governo brasileiro e o Estado brasileiro. Lula apareça bem, apareça bem junto à mídia. Isso reforça muito a imagem interna do partido, do partido e do presidente."
Ele destaca ainda o fato de o Brasil ter eleições municipais neste ano, pleito que ele afirma ser "uma antessala da eleição para a presidência da República".
Questionado sobre se o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, poderia aproveitar a oportunidade do G20 para fortalecer sua imagem, Niemeyer afirma que sim.
"Eduardo Paes é um político jovem, mas já muito experiente. Eu acho que ele deveria, sim. Seria muito importante, até porque a cidade do Rio de Janeiro é a cidade mais lembrada, junto com São Paulo, quando se fala de relações internacionais do Brasil. Lembram-se muito a cidade do Rio e a cidade de São Paulo."
Quais serão os principais temas da cúpula do G20?
Para Niemeyer, será difícil
emplacar o tema do multilateralismo nas discussões da cúpula, uma vez que, em sua avaliação, há outros temas mais urgentes.
"Temos uma guerra ocorrendo no seio da Europa, […] uma outra no Oriente Médio, Estados Unidos perdendo poder relativo, China crescendo seu poder relativo. Temos as questões climáticas, cada vez o planeta é mais quente. Então falar de multilateralismo agora é apenas conteúdo de sala de aula, é muito difícil você falar de construção de multilateralismo porque os países estão olhando o próprio interesse. É um mundo muito contraído do ponto de vista, assim, da política, a política está muito centrada em cada Estado, com seu poder relativo."
O especialista destaca que isso não vai mudar "enquanto tivermos um Conselho de Segurança da ONU com cinco países com poder de veto".
"Nós não vamos conseguir mudar isso quando nós tivermos países que são autorizados a ser países nucleares, como a Índia, e a maioria dos países tendo assinado o TNP, que é o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. É um mundo muito engessado a partir dos interesses das potências centrais, então você falar de multilateralismo fica como tema de sala de aula mesmo."
Questionado sobre as três dimensões do desenvolvimento sustentável, que abrange os setores econômico, social e ambiental, Niemeyer diz que esse é um tema bastante passível de ser abordado na cúpula, uma vez que "o ambiental está surgindo como a variável mais importante".
"Porque você não pode pensar em produção de soja, produção de alimentos, inclusive indiretos, que vêm da soja, que são produzidos a partir da soja, sem ter sombra e água fresca próximo daquela plantação de soja. Porque não se planta soja onde não tem sombra, não tem água, não tem terra agricultável, com um certo teor de pH, de umidade; você não produz soja. Então é fundamental [o tema ambiental]. Hoje você bebe e come meio ambiente."