Panorama internacional

Tecnologia militar é 'business' de Israel e deve ficar fora da crise com o Brasil, dizem analistas

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas destacam que a venda de sistemas de segurança é um dos principais negócios de Israel, portanto Tel Aviv não deve comprometer acordo de cooperação firmado com o Brasil para troca de expertise no setor.
Sputnik
Em março de 2019, o Brasil assinou com Israel um acordo de cooperação para intercâmbio de informações e expertise em questões de segurança pública. O acordo foi firmado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, que era alinhado ao governo do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu.
Segundo o texto do acordo, o objetivo seria promover, desenvolver, otimizar e estreitar a cooperação e o intercâmbio técnico e tecnológico, bem como de experiências no setor de segurança pública. A proposta visa à prevenção e ao combate ao crime organizado transnacional, em todas as suas formas, e foi elaborada em um momento que o Brasil tenta minar o avanço da atuação de facções criminosas brasileiras tanto em território nacional como no exterior.
Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados, em outubro do ano passado, convertendo-se no Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 554/2021, o texto foi enviado à Comissão de Relações Exteriores do Senado, onde aguarda, desde então, a designação de um relator.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam a possibilidade de o acordo de cooperação ser afetado pela crise diplomática entre Brasil e Israel, desencadeada após as críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à ofensiva israelense na Faixa de Gaza, que já ceifou cerca de 30 mil vidas no enclave.

Por que Israel é referência em tecnologia?

Clayton Pegoraro, professor no mestrado de economia e mercados da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que Israel é um país que tradicionalmente investe muito em tecnologia de segurança, tanto interna quanto para a venda a outros países.
"Vende [sistemas de segurança] para empresas ao redor do mundo, para governos. É o business do governo [israelense] fazer esse tipo de coisa."
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Ele diz que, justamente por ser um negócio tão crítico para Israel, é improvável que o acordo seja afetado pela crise diplomática entre os países.
"O Brasil continuará a ter boa relação com Israel e seguirá comprando armamento e fazendo essa transferência de tecnologia. Lembrando que Israel não é só armamento, também tem tecnologia na área da agroindústria. Mas nesse caso, os dois países têm interesse em continuar a negociação [do acordo]", destaca Pegoraro.
Danilo Bragança, coordenador adjunto do Laboratório de Estudos sobre a Política Externa Brasileira (LEPEB), da Universidade Federal Fluminense (UFF), sublinha que a liderança de Israel no setor de segurança, tecnologia e inteligência advém da campanha de ocupação de territórios do governo israelense, que resultou na necessidade de se proteger.
"Na prática, Israel é o Estado invasor, então a tecnologia de invasão precisa ser a tecnologia de ponta. Então o Estado de Israel investiu muito nesse tipo de tecnologia militar, de treinamento de pessoal propriamente dito, equipamentos para controle de multidão, para ocupação de espaços e para confronto direto, que a gente chama de boots on the ground", diz Bragança.
"Israel tem esse papel, digamos assim, ou conseguiu conquistar esse papel no mundo, muito porque se reconhece como um Estado circulado por países árabes. Mas, na prática, é um Estado invasor. E isso [aprimoramento no setor de segurança] tem a ver com a capacidade de invadir e a condição de ocupar e, enfim, retirar as populações que ali estão e eliminar aqueles que estiverem na frente. Israel tem esse papel e tem essa tecnologia, e acaba trocando com outros países do mundo que têm necessidade de vigilância", acrescenta.

Como é a relação entre Brasil e Israel?

Bragança afirma que a relação conturbada entre Brasil e Israel não é algo novo, e que os vínculos entre os países são marcados por momentos de aproximação e retração.

"Até porque não há estabilidade no que se refere aos números das trocas comerciais entre Brasil e Israel, elas não são tão contundentes assim, a gente não depende deles para nada e eles não dependem da gente para nada. Então há, portanto, pouca importância no aspecto comercial, e isso não aprofunda maiores questões."

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Ele afirma que grupos ainda associados a Bolsonaro tentaram se apropriar do episódio e "esquentaram ainda a chapa", no intuito de "produzir um maior efeito sobre a fala do presidente Lula". Porém destaca que a tentativa não produziu nenhum efeito sensível.
Bragança acrescenta ainda que houve uma tentativa do governo israelense de insuflar a controvérsia envolvendo a fala de Lula, o que acabou tendo efeito contrário, dando proeminência ao Brasil.
"O governo israelense, inclusive, aumentou o tom e foi obrigado a recuar, porque não houve nenhum tipo de apoio internacional mais contundente à resposta israelense e, na verdade, a comunidade internacional deu mais apoio à fala de Lula."

O que o Brasil mais compra de Israel?

Bragança se mostra cético quanto a classificar o atual imbróglio entre os países como uma crise diplomática, e diz não acreditar que o episódio tenha potencial de alterar o intercâmbio entre os países.
"Então você tem um acordo de cooperação técnica, intercâmbio de empresas e troca de tecnologia para, por exemplo, criação de armas leves, sistemas de informação, de inteligência, de monitoramento. Não seria, portanto, essa crise, que eu não consigo colocar como crise, que vai fazer com que Brasil e Israel tenham uma outra relação."
Ele explica que uma das principais coisas que o Brasil importa de Israel é a tecnologia de monitoramento e armamento para controle de multidões, e diz que o acordo de cooperação "facilitaria, de alguma maneira, a possibilidade de maiores intercâmbios entre empresas brasileiras que têm algum acesso ao mercado internacional".

"Sobretudo de armas leves, artefatos de controle de massas, que são utilizados, por exemplo, aqui, em caveirões, em controles de manifestações políticas no Brasil e no mundo inteiro […] — tem sempre uma bomba de efeito moral, de impacto sonoro, que foi produzida em Israel. E Israel tem uma protuberância ainda maior no que se refere a sistemas de informação, contrainformação e inteligência", explica Bragança.

Impasse pode afetar combate ao crime organizado?

Questionado sobre se uma eventual estagnação do acordo de cooperação poderia afetar o combate ao crime organizado no Brasil, Pegoraro afirma não ver ligação entre os casos.
"O combate ao crime organizado no Brasil é mais uma política interna. Entendo que seja função e competência de polícia (repressão e investigação) e até do Ministério da Justiça. Isso não tem ligação com a possível relação Brasil-Israel."
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Ademais, ele não considera que as tratativas em relação ao acordo, que afirma ter um caráter mais superficial, possam ser afetadas pela crise diplomática.

"Não vejo que essa declaração do presidente Lula possa afetar o trâmite desse acordo de cooperação, é apenas um acordo de cooperação entre os vários acordos que o Brasil pode celebrar com algum país. O acordo é algo mais inicial, o mais superficial que pode existir. Esse acordo de cooperação está ligado mais a uma intenção dos países do que qualquer outra coisa, até porque questão de armamento envolve segurança nacional, troca de tecnologia… Enfim, são áreas muito sensíveis."

Que países poderiam ocupar o lugar de Israel no intercâmbio de sistemas de segurança?

Para Pegoraro, caso o acordo seja efetivamente afetado por conta da crise, o Brasil teria outras opções como possíveis fornecedores de armas e sistemas de tecnologia voltados para segurança.

"Outros possíveis fornecedores de armas para o Brasil podem ser os grandes produtores de armas modernas: Estados Unidos, China, Rússia, Alemanha ou França. São os grandes produtores e fornecedores globais de armas modernas."

Entretanto, ele afirma acreditar que o imbróglio atual entre os países é momentâneo e não será totalmente prejudicial.
"Daqui a pouco os países, diplomaticamente, vão se acertar, se ajustar. Foi uma fala infeliz, quero frisar, mas que não vai abalar, de modo algum, essa intenção dos países, principalmente no que diz respeito a eventual cooperação tecnológica. Até porque Israel tem intenção de vender armamento e, principalmente, sistemas de vigilância e segurança ao Brasil."
Bragança, por sua vez, afirma que o Brasil poderia aproveitar o momento para fortalecer sua própria inteligência e aprimorar seus sistemas de informação, reduzindo a dependência externa em um setor crítico para a segurança nacional.

"Porque como país soberano que é, [o Brasil] deve ter consigo um sistema de inteligência que dê conta dos interesses estrangeiros no país. E nenhum sistema de inteligência [estrangeiro] aqui no Brasil deveria dar conta dos [habitantes] nacionais, que é o que historicamente acontece."

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