'Desconstrução construtiva': Putin sinaliza liderança russa no multilateralismo, notam analistas
14:24, 29 de fevereiro 2024
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam discurso de Vladimir Putin e apontam que o presidente russo expôs a ascensão de um bloco calcado no diálogo e na cooperação contra outro, liderado pelo Ocidente, voltado para a retórica bélica e de dominação.
SputnikO presidente da Rússia, Vladimir Putin, proferiu nesta quinta-feira (29) seu tradicional discurso anual na Assembleia Federal, sede do Parlamento do país.
Foi o 19º discurso de Putin perante parlamentares e, também, o mais extenso: foram 1 hora e 50 minutos de discurso, superando em cinco minutos o recorde do discurso de 2018. Durante sua fala, Putin abordou temas como a ascensão do multilateralismo, o estreitamento de laços de Moscou com países árabes e latino-americanos, a resiliência da economia russa e a construção de uma nova ordem global, apoiada por uma Rússia forte e soberana.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisaram os principais pontos abordados pelo presidente russo.
Eden Pereira, professor de história, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre África, Ásia e as Relações Sul-Sul (NIEAAS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e membro do Grupo de Estudos 9 de Maio, destaca a importância da Rússia enquanto potência diplomática para a construção da nova ordem global apontada por Putin.
"A Rússia é evidentemente uma potência militar, e eu acho que isso é um elemento fundamental quando são discutidas as relações entre os países e, principalmente, entre as potências. Mas tem outra questão muito importante: a Rússia resgatou, ao longo das últimas décadas, principalmente a partir do começo do governo Putin, a sua potência diplomática, que é a sua capacidade de poder dialogar com outros países, inclusive grupos de países", explica Pereira.
Ele afirma que, atualmente, a Rússia tem uma grande presença diplomática junto a
países do continente africano, cultiva um diálogo positivo com países da Associação dos Estados do Sudeste Asiático (ASEAN) e tem presença em organizações importantes, como a Organização de Cooperação de Xangai e o próprio BRICS, que ele afirma representarem
"a construção de uma nova arquitetura internacional".
"A Rússia vem como um ator principal desses blocos, então acho que isso posiciona a Rússia como um ator muito importante dentro desse novo sistema multilateral", diz o especialista.
Pereira afirma ainda que, a partir de sua posição forte dentro desses novos núcleos de poder, a Rússia mira fomentar "uma distribuição equitativa de responsabilidades em nível internacional, algo que não é possível hoje ainda".
"Porque prevalece não só uma ordem internacional restrita, principalmente em nível do âmbito da ONU [Organização das Nações Unidas], do Conselho de Segurança [da ONU], onde você tem a presença preponderante de países que eram potentes em 1945, mas porque também outros países que poderiam fazer parte desses núcleos de poder estão hoje excluídos, como é o caso, por exemplo, da Índia, do Brasil."
Pereira destaca que Moscou mira o que ele chama de "desconstrução construtiva", ou seja, liderando uma grande mudança no cenário geopolítico global, na qual a política belicista do Ocidente, alimentada por conflitos regionais, é substituída por uma abordagem multilateral, calcada no diálogo e na cooperação.
"Nos últimos anos, principalmente a partir da década passada, a Rússia passou a ter uma interação maior com os países árabes por causa, justamente, das crises políticas que foram estabelecidas no chamado Médio Oriente, o que a gente pode chamar também de Sudoeste da Ásia e Norte da África, por causa da chamada 'guerra ao terror'."
Ele ressalta que o Oriente Médio vivenciou, ao longo das últimas duas décadas, a guerra ao terror, patrocinada pelos Estados Unidos e outros atores europeus, o que resultou na destruição de uma série de Estados da região.
"E o que ocorreu é que, ao longo desse tempo, por meio desse processo, a Rússia foi aumentando a sua capacidade, a sua importância dentro dessa região, porque ela foi se inserindo como ator responsável", explica Pereira.
Ele lembra que a Rússia sempre teve um papel importante no Oriente Médio, desde a época da União Soviética (URSS), e que essa reinserção atual se dá no âmbito de promover a estabilidade da região, por meio do diálogo.
"Tem um diálogo também econômico. A Rússia tem hoje uma aproximação com os países árabes, sobretudo no que diz respeito a uma questão de projetos econômicos, principalmente com países como Arábia Saudita e Egito, no que diz respeito ao mercado do gás e do petróleo."
Aproximação com América Latina e Oriente Médio
Em seu discurso, Putin sinalizou a importância de maior
aproximação com a América Latina e com países árabes.
"A Rússia tem boas relações de longa data com os países árabes. Eles representam uma civilização única, desde o Norte da África ao Oriente Médio, que hoje está se desenvolvendo dinamicamente. Consideramos importante buscar novos pontos de contato com nossos amigos árabes para aprofundar todo o conjunto de parcerias. O mesmo vamos fazer na direção latino-americana", observou o presidente russo.
Sobre a declaração, Pereira afirma que a América Latina "é muito importante em nível internacional" e que a Rússia sempre buscou dar uma atenção especial à região.
"Desde o período da União Soviética, existe a tentativa de dialogar com os Estados latino-americanos, e, hoje, essa possibilidade é muito maior, porque existem Estados soberanos na região. Temos o caso de Venezuela, Nicarágua, Cuba e Bolívia. E o Brasil, recentemente, passa por um processo de ascensão global, não sendo só mais uma potência regional, mas com capacidade de projeção global", diz o especialista.
Ele afirma que a aproximação com a Rússia é importante para o Brasil, principalmente na busca do país por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), demanda que, recentemente, o chanceler russo, Sergei Lavrov, afirmou que tem o apoio de Moscou.
"Até porque nunca esqueçamos que a América Latina não tem nenhum país no Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma reivindicação que durante muito tempo o Brasil fez, mas nunca conseguiu o devido apoio por uma série de questões diferentes ao longo da história, mas que agora existe uma possibilidade muito grande, não só por conta do movimento de integração latino-americano, mas por conta de o Brasil estar dentro do BRICS", explica Pereira.
"E com a sua articulação política junto com países como Rússia, China e Índia, por meio do BRICS, mas sobretudo em diálogo com a Rússia, que é uma potência política diplomática, o Brasil consegue, junto aos outros países latino-americanos, reivindicar uma posição de maior poder e responsabilidade a nível internacional", complementa.
A opinião é compartilhada pela jornalista e pesquisadora Alessandra Scangarelli Brites, especialista em política internacional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestre em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), editora-chefe da Revista Intertelas e editora de mídias sociais da agência de notícias Xinhua.
Em entrevista à Sputnik Brasil, ela destaca que a cooperação com a Rússia também é benéfica para o Brasil por ser a Rússia uma grande parceira em questões de infraestrutura, o que poderia destravar alguns gargalos do país no setor. Ademais, Moscou também pode contribuir para o avanço do programa espacial brasileiro nas áreas científica e de tecnologia.
"O próprio Putin, no discurso dele, salientou muito essa questão da inteligência artificial. E a Rússia traz uma coisa muito importante, que, infelizmente, a América Latina, e isso vale para os países árabes também, acaba sendo muito dependente de tecnologias produzidas em outras regiões. Putin falou muito no discurso dele sobre soberania tecnológica", diz Brites.
"Isso é muito importante. Nós vimos agora, por exemplo, na COVID-19, como o Brasil e outros países ficaram à mercê daqueles que têm a tecnologia da vacina, da medicina. Eu sei que a Rússia está sofrendo sanções, então ela é mais enfática e para ela se torna crucial desenvolver tecnologias próprias, mas todos os países deviam ter isso em mente, ter uma soberania tecnológica", complementa.
13 de dezembro 2022, 17:09
Ela acrescenta ainda que a aproximação de Moscou tanto com países árabes quanto da América Latina dá-se de maneira equilibrada, diferentemente da abordagem unilateral dos Estados Unidos.
"A América Latina, mas, principalmente, eu acho, a América do Sul, é uma região que está sob certo controle dos Estados Unidos, mas tem aberturas para parcerias múltiplas. E uma aproximação da Rússia com a América Latina é essencial não só para a região, para ela ter uma diversidade de parcerias, e ter um equilíbrio das forças que exercem poder na região, como também para ter outras fontes de recursos e outras fontes de investimento em áreas muito importantes, como é o caso da área militar."
BRICS cresce enquanto G7 recua
Em seu discurso, Putin notou que a participação do BRICS na economia mundial em paridade de poder de compra até 2028 crescerá para 36,6%, enquanto a do G7 cairá para 27,8%. Questionada sobre a declaração, Alessandra afirma que esses dados sinalizam que o ciclo histórico de ascensão e queda de potências está novamente sendo concluído.
"Essa questão de potências que vão perdendo poder e outras que ressurgem faz parte da história humana. Sempre foi assim ao longo dos milênios, impérios que surgem, aí depois acabam. E o que está acontecendo agora, novamente, é uma transferência de poder. Não tem como você permanecer por séculos [no centro do poder]. Ao longo dos tempos vão se desfazendo poderes, vão se desfazendo capacidades de poder. Estados Unidos, vários países da Europa e alguns países da Ásia, como o próprio Japão, estão enfrentando problemas estruturais, política e economicamente. Suas economias estão em recessão, porém não é só isso, é uma crise político-social, crise de valores, crise de como estruturar a sociedade, porque muita coisa mudou ao longo dos anos", explica a especialista.
Pereira, por sua vez, aponta que os Estados Unidos e países europeus não fazem um investimento em seus sistemas de produção e infraestrutura.
"A única coisa que existe, em termos do orçamento por parte dos países do G7 garantido hoje, em termos de produção, é a indústria de armas", afirma o especialista.
Ele acrescenta que os Estados Unidos, por meio de sua indústria armamentista, têm movimentado bilhões com o conflito ucraniano.
"Alguns países europeus [também movimentaram], como a Alemanha, por exemplo, que reativou o seu complexo industrial militar, que há muito tempo estava passando por um processo de congelamento", afirma Pereira.
"Enquanto de um lado nós temos o BRICS pensando em infraestrutura, integração tecnológica, infraestrutural, do outro lado nós temos o G7 pensando em renovar sua indústria armamentista e seus instrumentos de dominação internacional, porque eles não têm mais a capacidade produtiva e material de manter essa hegemonia que foi construída durante cinco séculos, um período de colonização de boa parte do mundo", complementa.
Como a economia russa se mantém forte diante das sanções?
Em seu discurso, Putin projetou que a Rússia vai subir de quinta para quarta economia mundial, e disse que o Ocidente dispara "tiros nos próprios pés" com a política de sanções. Questionado sobre a declaração, Pereira sublinha que as sanções "tiveram, evidentemente, um choque muito profundo sobre a economia russa, mas elas não impediram o dinamismo econômico russo nem o desenvolvimento social do país".
"Se nós pegarmos os dados que foram previstos no início da operação militar especial russa, por parte dos ocidentais, e pegarmos os dados práticos, nós vemos que, em termos de tentativa de parar o desenvolvimento social e econômico da Rússia, [a política de sanções] foi um fracasso. Porque a Rússia não só teve um crescimento econômico no ano passado, em 2023, que superou a média de crescimento nas economias do mundo, mas, também, a Rússia tem passado por um processo de industrialização muito forte", destaca.
Alessandra, por sua vez, aponta que a política de sanções contra a Rússia
reflete o uso do dólar "como uma ferramenta de guerra" por parte dos Estados Unidos.
"Os Estados Unidos no pós-guerra estabeleceram todo um sistema, que a União Soviética assentiu também. Ela fez parte dessa construção. Então foi construída toda uma série de instituições financeiras, econômicas, a própria ONU, com base no dólar, com base no sistema que os Estados Unidos viam como forma de manter uma influência mundial. Porque os Estados Unidos têm como herança a visão dos países europeus, do Ocidente, de império. Não é aquele imperialismo clássico, de invadir um país e fazer colônias, mas ele captou, absorveu a ideia de imperialismo, não pelos meios clássicos, mas de controle por outras vias, que não a militar, que é pelo financeiro, pela economia, por ter a soberania tecnológica, as patentes científicas", explica.
Nesse contexto, ela afirma que há uma reação mundial contra essa dominação do dólar, com países buscando outras formas de transações, como moedas nacionais e também a moeda discutida pelo BRICS para transações entre o grupo.
"Então eu acho que a partir do BRICS, e, agora, com a ampliação do BRICS, essa discussão de forma prática vai ser possível."
Qual a importância da diplomacia cultura russa?
Putin destacou em seu discurso que Moscou vai investir na difusão da cultura russa ao redor do mundo, algo que países ocidentais fazem há tempos, e também a China, por meio do Instituto Confúcio. Questionado o motivo de a Rússia decidir investir em seu soft power somente agora, Pereira destaca que a Rússia investiu em diplomacia cultural no período da URSS, que tinha uma grande atividade, sobretudo nos países do continente africano e também em alguns países asiáticos.
"Essa diplomacia cultural não era do mesmo período da diplomacia cultural dos Estados Unidos, mas existia. Durante algum tempo, isso deixou de existir, porque a Rússia, por uma medida, deixou de visualizar a sua relação com os países do Terceiro Mundo para poder centralizar a sua relação com os países ocidentais. E os russos, então, hoje fazem uma autocrítica."
Alessandra sublinha a importância do investimento em soft power, citando como exemplo a indústria cinematográfica dos Estados Unidos, que ajudou a incentivar o modo de vida americano ao redor do mundo. Ela destaca ainda que a China também está ciente dessa importância, e, hoje, investe pesadamente em filmes americanos. Em troca, os produtores apresentam uma visão positiva da China em seus filmes.
"A Rússia tem um potencial imenso [na diplomacia cultural], mas, infelizmente, até o momento, talvez até pelas questões, essa pressão constante que ela sofre, não conseguiu ainda poder pensar esse potencial cultural, filosófico e científico a ponto de ter um planejamento de política externa nesse sentido."