Combate à pobreza, desenvolvimento com inclusão social e, principalmente, a reforma dos organismos internacionais ligados à Organização das Nações Unidas (ONU). À frente do G20 ao longo de todo o ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conseguiu reunir em uma agenda única a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, e a homóloga no banco do BRICS, o NDB (na sigla em inglês), Dilma Rousseff, para discutir assuntos de relevância sob a ótica das necessidades do Sul Global.
Na sequência, foi a vez do encontro com o presidente do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, Jin Liqun. A entidade é o segundo maior banco multilateral do planeta, que também se faz alternativa ao Banco Mundial.
O professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e especialista em geopolítica Leonardo Trevisan lembra à Sputnik Brasil que o país senta à mesa com essas grandes instituições globais como um credor, ao contrário do que foi marca no início do século junto ao FMI.
"O fundo não vê no Brasil alguém com o qual precisa emprestar dinheiro, mas que toma dinheiro para ajudar outros e de certa forma é olhado como modelo. Isso é muito real, tem muito a ver com os 30 anos do Plano Real. Então há uma estabilidade monetária que o Fundo Monetário Internacional preza muito", defende.
Já com relação ao banco do BRICS, o especialista pontua que a entidade é importante por ter como um dos focos o financiamento de obras sociais e de infraestrutura.
"Não que as instituições da ONU não tenham esse tipo de financiamento, mas ele [FMI] faz outro tipo de cobrança que o NDB não faz", argumenta o especialista. "Porém é preciso deixar bem claro que a Kristalina Georgieva, que é a diretora-geral do FMI, fez elogios à condução da política econômica brasileira com o ministro [da Fazenda, Fernando] Haddad. Isso é relevante", acrescenta.
E diante do encontro com as dirigentes das duas entidades, que também contou com a participação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o professor da ESPM classifica como algo importante para Lula discutir e viabilizar a reforma da governança global, que também é prioridade do Brasil no G20.
"O NDB tem inúmeros projetos de desenvolvimento em vários continentes. Então a Dilma conversa com a diretora do FMI com uma experiência diferente, e isso é importante: a troca entre duas visões. É preciso entender que logo após essa reunião o presidente Lula e a presidente Dilma tiveram um encontro com o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, que é um banco formado por capital chinês e concorrente direto do Banco Mundial, um fato curioso".
Outro ponto ressaltado pelo especialista em geopolítica é que o Brasil pede mudanças no FMI não mais sob a condição de devedor, mas como uma voz do Sul Global que é credora da entidade em busca de uma mudança estrutural.
"Foi uma pauta de quem fala como dirigente e não como dirigido. O país fala como alguém que tem condições de dizer: 'Olha, eu estou pondo os meus recursos no banco, eu quero saber onde é que eu estou gastando o meu dinheiro, eu quero mudar isso'. Essa é a posição do Brasil e nós temos uma posição um pouco diversa nesse sentido. Fomos muito acostumados a ver o Brasil somente como devedor desses bancos", argumenta.
O que é o banco do BRICS?
Criado em 2014 por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, então membros do BRICS, o NDB é uma das instituições financeiras de desenvolvimento mais recentes do globo, enfatiza à Sputnik a professora de relações internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Ana Garcia. Conforme a pesquisadora do BRICS Policy Center, o banco é composto desde a sua origem por países do Sul Global que buscam corrigir assimetrias internacionais que estão em vigor desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
"O NDB vem muito das lições aprendidas sobre efeitos negativos gerados pelas instituições anteriores. Então, quando vemos os documentos, todos possuem o objetivo de corrigir erros. Um deles é essa assimetria entre aquele que paga, e tem mais direito. Obviamente, o banco tem a China, Rússia e Índia, que pagam mais, e o Brasil e a África do Sul que vão pagar um pouco menos, mas nenhum deles tem um direito de veto sobre o outro. Todos possuem poderes iguais de voto e essa é a primeira grande questão", explica.
Além disso, a especialista pontua que a presidência é rotativa e indicada, a cada ciclo, por um país membro, como é o caso do Brasil atualmente. Por fim, Garcia vê como crucial a entidade trazer uma meta de realizar pelo menos 30% dos empréstimos até 2026 com moedas locais, e não o dólar. "Essas são diferenças importantes que vão deixar maior margem de manobra para os países em desenvolvimento buscarem recursos não apenas em uma ou duas instituições, mas em mais bancos regionais ou multilaterais com essas características distintas".
Segundo a professora da UFRRJ, o banco do BRICS, que para além dos empréstimos concedidos aos governos dos países — como em dezembro, quando concedeu US$ 1 bilhão (R$ 4,95 bilhões) ao Brasil —, realiza o financiamento de projetos específicos em áreas como infraestrutura e energia limpa, tem uma atuação mais equivalente ao que faz o Banco Mundial.
Como o FMI ajuda?
Países em crise na balança de pagamentos, quando mais recursos saem do Tesouro Nacional do que efetivamente entram, recorrem ao FMI, a exemplo da Argentina e da Grécia, que chegou a ser o primeiro país desenvolvido a deixar de pagar a dívida com a instituição em 2015. Além disso, por conta da pandemia da COVID-19, que levou quase três anos para ser superada e com intensos impactos econômicos em todo o globo, muitos governos voltaram a recorrer ao fundo.
"O FMI tem historicamente e continua tendo efeitos muito negativos porque as condicionalidades dos empréstimos levam países a fazer políticas de austeridade, ou seja, tirar dinheiro de investimentos públicos para poder pagar não apenas a dívida em si, mas os juros. Hoje os países gastam mais na moratória e nos juros do que na própria dívida em si. Então eles deixam de investir, por exemplo, em meio ambiente, combate à pobreza, às desigualdades, deixam de investir em saúde e em educação", comenta.
Com isso, diante de diretrizes como privatizações, autonomia do Banco Central e busca do déficit zero, a especialista vê os efeitos sociais e ambientais como gritantes.
"Aqui na nossa região, a Argentina sofre isso brutalmente, outros países africanos e asiáticos também. O Brasil viveu isso nos anos 1980 e 1990, mas conseguiu terminar de pagar a sua dívida."
Como o Brasil se livrou do FMI?
Ainda em 2005, no fim do primeiro mandato do presidente Lula, o Brasil conseguiu quitar a última parcela da dívida com o FMI, na época orçada em US$ 15,5 bilhões (R$ 76,6 bilhões na cotação atual), que venceria em dois anos. A professora de economia Juliana Inhasz, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), afirma à Sputnik que economias como a brasileira, que estão em desenvolvimento, precisam crescer no curto prazo e, por conta disso, são menos austeras.
Diante disso, a especialista vê como um sucesso iniciativas como do NDB, que possuem contrapartidas menos apertadas.
"É mais fácil, sem dúvida, você conseguir entre pares que entendem às vezes as suas necessidades ou as suas restrições do que conseguir empréstimos com países ou com organismos que têm uma outra cultura e uma outra forma de enxergar institucionalmente a questão", avalia. A especialista ainda acrescenta que o país poderia aproveitar melhor as oportunidades de financiamento do banco do BRICS, especialmente de projetos e com o comando da ex-presidente Dilma na instituição.
"Vale muito a pena quando estamos falando de projetos de infraestrutura, energia, que estejam ligados aos interesses dos países signatários [...]. O Brasil hoje tem um investimento como proporção do PIB baixo, isso pode causar problemas maiores do que o que já causa", classifica. É o caso, também, do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, cujo presidente, Jin Liqun, declarou após encontro com Lula que a instituição não tem restrições de capital e está pronta "para impulsionar o desenvolvimento econômico e social do Brasil", inclusive com projetos de grande porte.
Elogios às políticas do Banco Central
Com mandatos fixos a cada quatro anos para dirigentes, o Banco Central do Brasil teve a autonomia aprovada em 2021, sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Desde o retorno de Lula ao poder, as críticas ao presidente da entidade, Roberto Campos Neto, indicado na gestão anterior, cresceram por conta da política de aumento do juros para controlar a inflação que vigorou até o ano passado. A medida foi elogiada nesta segunda pela diretora-geral do FMI, durante encontro com Lula.
O professor do IBMEC Eduardo Coutinho finaliza à Sputnik Brasil que a declaração de Kristalina Georgieva não surpreende.
"As políticas utilizadas pelo nosso Banco Central para o controle da inflação estão em linha com as melhores práticas mundiais que, por sua vez, estão em linha com a literatura econômica e ampla evidência estatística", defende.