Panorama internacional

Crise humanitária, 2 armas por pessoa e conflito com potências: como o Iêmen pode encontrar a paz?

A escalada da guerra em Gaza, que desestabiliza todo o Oriente Médio, fez o mundo voltar os olhos para um país até então esquecido, mas repleto de tensões, divisões e problemas sociais: o Iêmen. Grupo que controla mais de 30% do território e ligado à causa palestina, os houthis passaram a atacar navios ligados a Israel como retaliação ao conflito.
Sputnik
No extremo da península da Arábia, um país de posição estratégica no globo concentra 12% da rota do comércio mundial de combustível, petróleo, gás e outras commodities cruciais. Localizado entre o mar Vermelho e o golfo de Áden, o estreito que fica no Iêmen, Bab al-Mandab, reduz em até seis dias o transporte marítimo para a Europa e os Estados Unidos e é justamente essa logística que gerou preocupação em todo o mundo nos últimos meses: por conta da guerra promovida por Israel contra os palestinos em Gaza, um grupo paramilitar do país passou a atacar navios ligados a Tel Aviv e aliados que usam a região para chegar ao canal de Suez, no Egito.
Mas essa é só uma ponta dos problemas que o país vive desde o fim do século passado. Sócio-fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Oriente Médio (GEPOM), além de professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da pós-graduação da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Najad Khouri ressaltou ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que há uma divisão do país entre xiitas e sunitas, que são as duas principais vertentes do mundo muçulmano.
Diante da repressão do governo central contra a minoria xiita, surge o grupo paramilitar dos houthis na região norte do país, apoiado pelo Irã. A partir de 2014, conseguiram ocupar mais de um terço do território, inclusive a capital Sanaa. Já do outro lado, o Conselho de Liderança Presidencial, liderado por Rashad al-Alimi, tem o apoio de países como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos, além de várias facções militares que chegam a ter até 30 mil membros. Tudo isso em um país de quase 33 milhões de habitantes e onde existem mais de 64 milhões de armas, ou duas para cada habitante — o segundo maior índice do mundo.
"Isso dificulta muito qualquer acordo de pacificação na região. A primeira coisa que seria necessário é tirar armas da população. Já se você pensar que cada casa tem duas armas, duas metralhadoras ou dois rifles […]. E também desarmar as milícias, o que não é fácil. O próprio Iêmen tem de 10 a 15 grupos armados a favor do governo e os houthis contra", ressalta Khouri. Em 2021, após um acordo mediado pela Arábia Saudita, que apoia o governo local, o país chegou a viver um cessar-fogo e os Estados Unidos até deixaram de classificar o grupo opositor como uma organização terrorista internacional.
Mesmo com a paralisação do conflito interno, o Iêmen já vivia uma das piores crises humanitárias do mundo, com 21 milhões de pessoas dependendo de ajuda humanitária e pelo menos 500 mil crianças com quadro de desnutrição severa. Foi nessa época que a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados, recebeu autorização para começar a atuar na região.

"Mas agora há o risco de que essa ajuda pare, porque os Estados Unidos estão voltando a classificá-los [os houthis] como uma organização terrorista designada [por conta dos ataques aos navios], o que pode prejudicar a questão financeira relacionada à UNRWA […]. Dois terços da população sofrem com escassez de trabalho e bens de consumo e há muitas crianças subnutridas. Se parar, realmente a situação vai ficar muito complicada", pontua.

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Como está a situação do Iêmen na atualidade?

Reflexos da pandemia, empobrecimento da população, surtos de doenças como cólera e devastação causada por longos anos de conflito interno — mais de 4,3 milhões de iemenitas estão deslocados internamente. Para resolver tantos problemas, Najad Khouri acredita que a única solução seria unificar o país, com a integração de todos os segmentos sociais ao governo central, incluindo os houthis.
"É uma população que sempre sofreu com a discriminação, então a única solução para que volte ao normal é integrar esse grupo minoritário ao país, à vida social, ao trabalho. Só assim você terá uma pacificação do Iêmen. Do contrário, seria mais destruição, pobreza, briga e envolvimento estrangeiro. [As tensões] aumentam a reação dos americanos, os ingleses e os europeus, que agora estão formando mais forças para controlar a navegação e fazer contra-ataques", resume.
O Iêmen é apenas uma parte de toda a situação complexa que atualmente vive o Oriente Médio. O especialista lembra que, no início do ano passado, chegou a acreditar em uma mudança na região após a retomada das relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irã, as principais potências regionais, com o apoio da China, e sem envolver um tradicional aliado dos sauditas: os Estados Unidos.

"Fiquei muito otimista e acreditava que os países iriam gastar seus recursos no desenvolvimento sustentável, tanto político quanto econômico. Mas, infelizmente, a coisa não durou muito e em outubro eclodiu a guerra entre Hamas e Israel. E agora estamos vendo outros conflitos, como no sul do Líbano, norte de Israel, ataques na Jordânia, Iraque e Síria. Houve ataques iranianos na fronteira com o Paquistão e vice-versa. Então você vê o Oriente Médio com vários pontos de convulsão e que está sem controle", argumenta.

Qual a riqueza do Iêmen?

Apesar da localização estratégica, o Iêmen não consegue se beneficiar tanto da posição, sendo considerado uma das menores economias do mundo: com um produto interno bruto (PIB) inferior a US$ 22 bilhões (R$ 108 bilhões) — praticamente o mesmo valor do município de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, que tem pouco mais de 2,5 milhões de habitantes —, e ocupa a 117ª posição do ranking mundial. A principal fonte de riqueza é o petróleo, mas não há reservas extensas e mais de 80% da população vive abaixo da linha da pobreza.
Desde 2014, quando viu o PIB chegar a quase US$ 44 bilhões (R$ 213 bilhões), a produção interna encolhe ano após ano. Para chegar a essa situação, a coordenadora do curso de pós-graduação em direito internacional humanitário e geopolítica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Bárbara Thaís Pinheiro Silva, disse ao podcast Mundioka que a situação é reflexo de décadas e mais décadas de dissidências internas. Entre 1914 e 1990, era dividido entre Iêmen do Norte (conhecido como República Árabe do Iêmen ou República Nacionalista Árabe) e Iêmen do Sul (a República Democrática do Iêmen), divididas entre xiitas e sunitas.
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"E com a unificação dessas duas partes surge a República do Iêmen. Isso gerou uma expectativa de melhoria para o país, o que não veio a acontecer. Então, após esse processo de unificação na década de 1990, as divergências entre o Partido Popular Geral e o Partido Socialista se intensificaram a tal ponto que levaram a uma guerra civil em 1994, principalmente devido aos vários escândalos de corrupção, de crise política e de insatisfação da população", enfatiza. Tanta instabilidade fez o país recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Porém, isso também não ajudou, pelo contrário: a partir da década de 2000, cresceram os problemas diante da marginalização cada vez maior pelo governo da população xiita, que mais tarde daria origem ao grupo militar dos houthis. "Surgiram também como resposta a uma insatisfação da população devido à corrupção política e também uma resposta à propagação do salafismo, que é um movimento dentro do islamismo sunita, que favoreceu a influência financeira e religiosa saudita no Iêmen", conta.

Qual foi a origem do conflito na Palestina?

Paralelamente a toda dificuldade e todo conflito interno no Iêmen, a população xiita do país sempre esteve ligada à causa palestina no Oriente Médio, razão pela qual os houthis iniciaram os ataques aos navios no mar Vermelho. Antes disso, a questão da Palestina estava relegada a segundo plano na região por décadas, acrescenta a especialista. Isso por conta dos esforços conduzidos por Israel a partir de 2000 para se aproximar dos países árabes sunitas, que culminaram nos Acordos de Abraão em 2020.
"Então, embora esses acordos pareçam significar um resultado positivo para a região, seria um erro não levar em consideração a parte perdedora nesse negócio, que são os palestinos. Então, por meio dos Acordos de Abraão, os países árabes priorizam as cooperações em torno de questões militares, de inteligência, de estratégia econômica com Israel, em detrimento da causa palestina", defende. Em 2020, os acordos israelenses foram formalizados sob a mediação dos EUA com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão, além de estar perto de ser fechado com a Arábia Saudita.
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Em meio a uma tentativa de isolamento do Irã — que é xiita — na região e ao afastamento desses países da causa palestina, a questão geopolítica regional foi duramente afetada.
"O fato de Israel concretizar os Acordos de Abraão em 2020 com alguns países árabes e, no ano passado, ter estreitado os laços com a Arábia Saudita, sem ter alcançado uma solução para a questão palestina, pode ser um indicativo da mudança das tendências entre as nações árabes, que antes eram fortemente aderentes à causa palestina", explica a coordenadora.
Esquecida pelo mundo árabe, a pressão sobre a Palestina, tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia, crescia com o retorno do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ao poder, que inclusive aumentou o número de assentamentos judaicos nos territórios ocupados.

"E é por isso que os houthis enxergam que têm um papel a considerar nesse conflito entre Israel e o Hamas e, consequentemente, atraem a atenção das grandes potências ocidentais [ao apoiarem Gaza]. Então, resumindo, as tensões entre Israel e Palestina são um dos obstáculos mais significativos, portanto, em um processo de paz no Oriente Médio. E mesmo que os países árabes ainda apoiem a causa palestina, eles estão cada vez mais dispostos a trabalhar por várias relações com Israel."

Conflito interno que gera lucro para as potências

De um lado um grupo armado apoiado pelo Irã, do outro um governo aliado dos sauditas e, consequentemente, dos norte-americanos. Entre todo esse caos, uma população iemenita cada vez mais pobre. A especialista avalia que a questão no país do Oriente Médio envolve múltiplos atores globais, cada um com seu interesse em meio às dificuldades da região.
"Tem uma questão geopolítica por trás. A Arábia Saudita, que financia o governo do Iêmen para combater os houthis, o Irã financiando os houthis para combater o governo local, os Emirados Árabes Unidos também dando apoio ao governo iemenita, que é contra os houthis. O governo central vai comprar armas dos Estados Unidos, do Reino Unido. Enfim, cada um sai lucrando", finaliza Silva.
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