Panorama internacional

Rússia desponta na luta por soberania digital: que lições o Brasil pode aprender?

Em seu discurso ao Parlamento, Vladimir Putin anunciou um investimento de 100 bilhões de rublos (R$ 5 bilhões) na criação de uma rede de satélites de Internet nacional. Em 2019, o país já havia sido bem-sucedido em um teste em que se desconectou do restante do mundo. Curiosas, as ações russas revelam uma forte preocupação com sua soberania digital.
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No mundo de hoje, comenta Carolina Batista Israel, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet, o mundo digital "passou a integrar a própria espacialidade e funcionamento de diversas dimensões da sociedade".

"De sistemas de energia a serviços hospitalares, a quantidade de atividades dependentes da Internet a coloca, hoje, como dimensão estratégica de um Estado."

Nesse ponto, a estratégia russa de criar sua própria infraestrutura, conhecida como RuNet, seja por satélite ou cabos, é "sem dúvida um exercício de soberania digital".
Soberania, explica Israel, se refere ao direito de um Estado sobre a gestão de seu território e, "consequentemente, o dever de não ingerência de um Estado sobre o território alheio. Em se tratando da esfera digital, a posse e gestão dessas infraestruturas por parte do Estado proporciona segurança no âmbito geopolítico", afirma.

"Mas há uma outra dimensão de segurança, que consiste em garantir a integridade de atividades e espaços que se tornaram dependentes do digital […]."

Para Luca Belli, professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV, a Rússia faz parte de um grupo de países que "entendem muito bem que a dependência tecnológica de outros países, particularmente de países que podem ser considerados rivais estratégicos, é uma enorme fraqueza".
Em tempos de paz, afirma Belli, a dependência tecnológica não é "algo em si nefasto". O país perde "apenas" em termos econômicos, tanto pela falta de empresas nacionais providenciando esses serviços quanto pelo lucro saindo do país e os impostos sendo recolhidos por outras nações.

"Em termos econômicos é absolutamente burro, porque esses dados que estão sendo armazenados, coletados, [estão] gerando lucro e pagando impostos em servidores de outras instituições."

No entanto, ressalta Belli, é em épocas de conflito que não considerar a possibilidade de autonomia digital é "ingênuo".
A partir do caso de Edward Snowden, que, como lembra Belli, revela a existência do programa de vigilância global PRISM, da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), os russos obtiveram uma visão "incomparável sobre as capacidades alheias, particularmente americanas, de utilizar as tecnologias que têm uso comercial" para fins militares de inteligência.
Esses dados podem, além de ser obtidos nas empresas provedoras de conexão à Internet e nas empresas de conteúdo, ser interceptados enquanto passam pelos próprios cabos submarinos.
Percebendo essa vulnerabilidade à espionagem norte-americana, a União Europeia e o Brasil criaram, em 2016, o cabo EllaLink, que liga o Brasil, em Fortaleza, à Europa, em Sines, Portugal.

"Quando os russos e os chineses falavam de soberania digital, era algo percebido como […] autoritário. Quando os europeus começaram a falar de soberania digital, aí virou algo democrático", provoca Belli.

Soberania digital: as camadas da Internet

É impossível falar de soberania digital sem pensar em um esforço amplo de autonomia em diferentes níveis, desde a infraestrutura material, como cabos, satélites, torres e antenas, a ativos imateriais, como software e serviços.
"No estudo da Internet, a gente fala de várias camadas, com a subdivisão mais simples em camada de acesso, aplicativos e conteúdos", afirma Belli. "Nessas três, você corre riscos de dependência e tem oportunidade para desenvolvimento econômico social."
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A Rússia não só busca o controle da infraestrutura de acesso, como detalhado anteriormente, mas também dispõe de grandes atores nas demais camadas, possuindo serviços próprios, como o buscador Yandex, a rede social VK e o app de mensagens Telegram.
Carolina Israel destaca a importância que esses serviços, designados pelo termo inglês "over-the-top" (OTT), "pois estariam situados no topo da infraestrutura", têm ao lembrar do escândalo da Cambridge Analytica, empresa de consultoria política que usou "dados do Facebook para influenciar processos eleitorais de diversos países".

"Como a revista The Economist afirmou, na era do capitalismo digital os dados são o novo petróleo."

"Permitir que empresas estrangeiras explorem economicamente os dados de uma população", alerta Israel, "significa abrir mão da soberania de dados e permitir que outros países desenvolvam vantagem econômica, além de influência política e cultural, sobre o território nacional".
Para Belli, esse é um grande ponto fraco do ecossistema de Internet brasileiro. O especialista aponta para o fato de que apesar de a maioria dos brasileiros terem acesso à Internet, isso ocorre através de planos de celular pré-pagos com franquias muito baixas.
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"Mas com aplicativos patrocinados, tipicamente redes sociais do grupo Meta [cujas atividades são proibidas na Rússia por serem consideradas extremistas]. Qual a consequência disso? A população conectada brasileira gasta quatro horas por dia, em média, em redes sociais do grupo Meta."

"As comunicações pessoais ou comerciais, a maioria delas no país, acontecem por meio de redes sociais do grupo Meta. Quando houve o apagão do Facebook há dois anos, o país ficou basicamente paralisado por uma tarde inteira."

Cibersegurança no Brasil

Em dezembro do ano passado foi publicado o Decreto nº 11.856, que institui a Política Nacional de Cibersegurança e o Comitê Nacional de Cibersegurança. Para Israel, o documento é um marco, uma vez que não só versa sobre "a soberania nacional e a priorização dos interesses nacionais", mas também garante que essa política contemple "a liberdade de expressão, a proteção de dados pessoais, a proteção da privacidade e o acesso à informação".
Isso não quer dizer, no entanto, que foi só a partir do ano passado que o Brasil começou a se importar com a sua soberania digital.
"Há 20 anos", lembra Belli, "o Brasil foi pioneiro da soberania digital, apesar de não ser chamado assim, quando, no primeiro governo Lula, a administração pública adotou o software livre". Colocar o governo para utilizar o Windows, da Microsoft, é uma vulnerabilidade, uma vez que os dados da administração pública passam a ser processados por uma empresa estrangeira, afirma.
"Quando a administração pública, por padrão, começou a utilizar software livre, em 2003, não só a administração virou independente, mas também se começou a desenvolver mais o software livre, um bem comum digital", disse.
Mas o software livre não é uma bala de prata, sublinha Belli. É preciso investimentos no desenvolvimento de tecnologias digitais nacionais. Na Rússia, desde 2017 o governo aprovou uma série de fomentos para o setor em áreas estratégicas, como big data, conectividade via satélite, inteligência artificial e desenvolvimento de semicondutores.
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Já no Brasil, o orçamento para pesquisas públicas na área digital vinha em ascensão, mas a partir de 2015, até 2022, houve cortes, destaca Belli. "Voltou aos níveis de 2010. O investimento público em pesquisa foi totalmente cortado."
Nos últimos anos, expõe Israel, "os entes federativos e seus municípios têm adentrado uma política econômica pouco atenta para a importância da soberania digital e de dados". "Em 2020, por exemplo, o governo brasileiro assinou um acordo com a Microsoft para o uso de inteligência artificial no Sistema Nacional de Emprego [Sine]."
Ou seja, na justificativa de melhor correlacionar o perfil de uma pessoa desempregada a uma vaga de emprego, o governo transferiu "dados do mercado de trabalho brasileiro para os Estados Unidos", "um caso flagrante de risco à soberania digital", afirmou Israel, que cita um relatório produzido pelo MediaLab, laboratório de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"O que tiramos como conclusão é que o principal e fundamental risco que o Brasil corre ao terceirizar infraestruturas e serviços digitais a outros países passa pela completa perda de sua soberania sobre as áreas digitalizadas."
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Ciberdefesa brasileira: um caso de sucesso

Se só nos últimos anos, com a instituição do Comitê Nacional de Cibersegurança e a Nova Indústria Brasil, política que prevê investimentos de desenvolvimento para o setor digital, o país voltou sua atenção para a cibersegurança como um todo, na área de ciberdefesa o Brasil se revela um grande expoente.
A ciberdefesa é uma atividade militar. "É a capacidade de evitar ataques, reagir em caso de ataques e dissuadir ataques", diz Belli. Há áreas na cibersegurança que não competem às Forças Armadas, como a segurança de infraestrutura digital de universidades e hospitais públicos, explica o pesquisador.
Mas na nova organização da cibersegurança brasileira há um grande componente militar, uma vez que quem está liderando o esforço é o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República. Desde os anos 2000, explica Belli, quem mais atua na área são as forças, hoje através do Comando de Defesa Cibernética.

"Até porque foi o próprio Exército que liderou todos os esforços de cibersegurança no caso dos megaeventos que o Brasil organizou, seja a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpicos."

O megaevento é o alvo de ouro do ciberatacante, explicou Belli, "porque não pode não ser transmitido".

"No nível de ciberdefesa, domínio militar, o Brasil é já bastante avançado", afirma Belli, "mas no que diz respeito à ciberdefesa de serviços públicos ou serviços privados, tem ainda muitíssimo a ser feito no país."

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