Durante a entrevista, o mandatário argentino por diversas vezes elogiou os chamados "valores" americanos, fundamentados na "liberdade do indivíduo" e na diminuição do papel do Estado na sociedade.
A própria base da campanha eleitoral de Javier Milei na Argentina esteve voltada para dirimir a participação do Estado na economia, eliminando uma série de ministérios, por exemplo, e na defesa do que ele chamou de "superioridade moral do capitalismo".
Para além disso, Milei enfatizou que sua chegada ao poder em Buenos Aires se deve à chamada "guerra cultural" hoje em curso na Argentina, fenômeno também presente em demais países do continente.
Segundo Milei, essa guerra cultural se dá entre dois campos principais. O primeiro deles diz respeito a forças progressistas de esquerda, centradas no desejo de transformar suas sociedades por meio da defesa dos direitos das minorias e de pautas identitárias multifacetadas.
A segunda força nessa disputa é composta por conservadores de direita que se orientam pela defesa da tradição, da religião e, ao mesmo tempo, enfatizam a liberdade individual e de mercado — no plano econômico.
Não só na Argentina, mas também nos próprios Estados Unidos e até mesmo no Brasil, ambos os lados dessa disputa se entranharam em uma verdadeira miscelânia de conceitos que ora se complementam, ora se contradizem, tornando o diálogo entre as partes cada vez mais difícil.
Milei, por sua vez, é um personagem político que ascendeu em popularidade justamente no contexto dessa "guerra cultural" argentina, mas também, e principalmente, por conta das precárias condições econômicas na qual o país se encontra já há muitas décadas.
Economista de formação, Milei fez menção de afirmar que finalmente "os argentinos decidiram amadurecer […] e, de uma vez por todas, começar a fazer as coisas direito". Durante a entrevista para o público conservador americano, o mandatário argentino, obviamente, não deixou escapar a chance de dizer que "os argentinos decidiram abraçar a liberdade".
O presidente argentino, Javier Milei, fala durante a reunião anual da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês), em National Harbor, Maryland. EUA, 24 de fevereiro de 2024
© AFP 2023 / Mnadel Ngan
Milei sabe que há um simbolismo muito forte em torno da palavra "liberdade" para grande parte da audiência estadunidense, assim como para a sua classe política. Afinal, os Estados Unidos ainda se consideram os "defensores do mundo livre" e das "liberdades individuais". Logo, qualquer líder mundial que lançar uso desses termos em suas aparições públicas estará irremediavelmente acenando para Washington em busca de apoio político ou, até mesmo, financeiro.
No mais, quando perguntado por seu interlocutor "qual exemplo a Argentina deixa para o resto do Ocidente?" ou então "onde foi que o Ocidente errou?", Milei indica que a principal falha teria sido o abandono dos princípios fundadores ocidentais de "liberdade".
Para o argentino, o Ocidente optou por abraçar o "politicamente correto" que, na sua visão, nada mais é do que um ideário socialista repaginado para o século XXI. Trata-se não mais do socialismo ancorado no materialismo histórico de Karl Marx, mas sim de um socialismo ancorado em disputas culturais encabeçado por forças políticas progressistas, sem necessariamente aludir à clássica luta envolvendo os trabalhadores e a chamada burguesia.
Nesse sentido, segundo Milei, as ideias do pensador italiano do século XX Antonio Gramsci teriam obtido pleno sucesso na Argentina antes de sua chegada ao poder. Isso porque, na opinião do mandatário argentino, os ideais desse "novo socialismo" se encontram enraizados no sistema educacional, midiático, cultural, institucional e governamental em quase todo o país. Todos esses segmentos, por sua vez, são parte do que Gramsci classificou como "superestrutura".
De forma resumida, para Gramsci, era importante deter a "hegemonia" do discurso dentro da "superestrutura" da sociedade, de forma a moldar seus valores culturais e, assim, impedir a população de questionar o status quo. De acordo com Milei, a sociedade argentina havia chegado a um estado de quase completa dominação do ideário progressista, o que teria contribuído para a derrocada social e econômica do país.
A partir dessas colocações, Milei é vendido ao público conservador americano como uma espécie de "modelo" a ser seguido, como um líder capaz de reverter as agendas culturais e políticas desse "novo socialismo" do século XXI. Não surpreende, portanto, que o líder argentino tenha se encontrado com Donald Trump em fevereiro deste ano, além de ter feito uma viagem a Israel no mesmo mês para uma reunião com Benjamin Netanyahu.
Ambos os encontros serviram para mostrar que a Argentina de Milei reorientou sua política externa para o Ocidente, dando especial ênfase para Estados Unidos, Europa e Israel, em detrimento de suas relações com países como a China, o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva e até mesmo o grupo BRICS.
Entretanto, este talvez seja um dos momentos mais peculiares para a Argentina se dizer alinhada aos "valores humanistas e de liberdade" do Ocidente, tendo em vista o apoio ocidental às empreitadas de Israel em Gaza, que desde outubro já causaram a morte de mais de 30 mil palestinos. Ainda assim, não compete esperar que Milei venha a abandonar os vários simbolismos políticos incutidos em seu discurso.
Afinal, sua missão é justamente conquistar a simpatia da audiência americana — sobretudo de sua parcela conservadora —, o que pode gerar algum dividendo a Buenos Aires caso Trump vença a disputa à presidência em novembro.
Para concluir, ao final da entrevista Milei diz considerar Moisés — protagonista do livro bíblico de Êxodo — como o "maior herói da liberdade de todos os tempos". Pode ser que Milei queira ser assim lembrado por seus interlocutores no Ocidente: uma espécie de "Moisés argentino" do subtrópico.
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