Putin, como Xi, Modi e Lula, deixa claro que agenda global precisa ser democratizada, diz analista
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas comentam o discurso do presidente russo, Vladimir Putin, em São Petersburgo e apontam hipocrisia da ofensiva diplomática de Kiev na cúpula sobre a paz na Ucrânia organizada pela Suíça.
SputnikO presidente russo, Vladimir Putin,
discursou nesta sexta-feira (7) na
sessão plenária do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo (SPIEF, na sigla em inglês), que contou com a presença dos presidentes da Bolívia, Luis Arce, e do Zimbábue, Emmerson Mnangagwa.
No discurso, Putin falou sobre o bom desempenho da economia russa,
abordou os trabalhos do BRICS para criar um sistema de pagamento independente e enfatizou a importância da renovação tecnológica no contexto geopolítico atual.
Putin lembrou que a
economia da Rússia recentemente
ultrapassou a do Japão e a da Alemanha e se tornou a quarta do mundo em paridade de poder de compra.
"A Rússia permanece sendo um dos atores-chave do comércio mundial, apesar das restrições e das sanções ilegítimas", disse o presidente russo, acrescentando que "os países amigos da Rússia são responsáveis por três quartos de seu volume comercial".
Em entrevista à Sputnik Brasil, Eden Pereira Lopes da Silva, professor de história e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre África, Ásia e as Relações Sul-Sul (NIEAAS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirmou que "a resiliência atual da economia russa pode ser explicada a partir de dois importantes pontos".
"O primeiro ponto diz respeito à intervenção do Estado na economia, que garantiu a continuidade do processo produtivo e a estabilização do oferecimento de bens e serviços à população e a vários setores-chave da economia de maneira geral. Isso se deu de uma maneira coordenada, com uma política macroeconômica conduzida também pelo Banco Central da Rússia, que, por meio do controle do comércio exterior e também de juros, conseguiu garantir que não houvesse um processo inflacionário", explica o pesquisador.
Silva acrescenta que "outro ponto a ser destacado diz respeito ao processo de substituição de importações", desencadeado após o desligamento da economia russa com relação à Europa, que levou a uma "reorganização da cadeia de abastecimento de bens e serviços na própria economia russa".
"Alguns insumos e as espécies de serviços que anteriormente eram oferecidos por empresas alemãs e francesas foram substituídos por soluções domésticas. E isso acabou levando a um processo de intensificação do dinamismo econômico interno no país, por meio da criação de novos setores, sobretudo na indústria. E nesse caso nós podemos destacar especificamente a indústria automobilística, que […] teve que produzir uma série de soluções domésticas para poder manter o funcionamento […]", afirma o especialista.
"Isso garantiu não só que as fábricas não fossem fechadas e a população se mantivesse empregada, como também a continuidade do abastecimento desses bens e serviços para a população de uma maneira geral.
No discurso, Putin também enfatizou que "a confiança na estrutura de pagamentos foi minada pelos próprios países ocidentais" e ressaltou que o BRICS está "trabalhando em sua própria estrutura de pagamentos, independente do Ocidente", que "não esteja sujeita a pressão política, abuso e intervenção externa de sanções".
"A credibilidade e confiança dos sistemas de pagamentos ocidentais foram severamente minadas pelos próprios países ocidentais. A esse respeito, gostaria de observar que, no ano passado, a parcela de pagamentos para as exportações russas nas chamadas moedas 'tóxicas' de países hostis diminuiu pela metade", disse Putin.
Para Silva, é sintomático que a busca por sistemas alternativos de pagamento seja abordada no discurso de Putin, uma vez que o tema tem ganhado espaço entre políticos e cientistas sociais ao longo dos últimos anos, "sobretudo nos últimos meses, por ocasião da apresentação de uma série de propostas de caminhos alternativos para um novo sistema de transações comerciais e financeiras internacional que o BRICS está propondo construir".
"Essa iniciativa, que hoje é liderada pelo banco do BRICS, teve uma atenção muito importante, pois a presidente do banco, Dilma Rousseff, que teve um encontro pessoal com Putin, esteve presente no fórum, fez um discurso muito importante, no qual destacou a importância econômica produtiva do BRICS dentro da nova economia internacional que vai emergir ao longo das próximas décadas, e que isso precisa, em alguma medida, refletir uma nova divisão do sistema econômico internacional, que hoje se constitui na emergência de potências regionais que detêm não só recursos naturais, mas também recursos científicos e tecnológicos, e que não estão mais localizados dentro do Ocidente. Podemos destacar países como Indonésia, Brasil, Nigéria, África do Sul, que cumprem uma importância fundamental no impulsionamento do dinamismo econômico internacional hoje."
Ele acrescenta que "apesar de o dólar permanecer como a principal moeda de transações financeiras internacionais e unidade de medida para o comércio, ele se tornou uma 'faca de dois gumes'".
"Porque ao mesmo tempo em que acaba se tornando uma moeda necessária para fazer as transações internacionais, o dólar é controlado pela Reserva Federal dos EUA [conhecido como Fed], que não corresponde aos desejos e interesses da maior parte da população global, e sim aos interesses econômicos particulares dos Estados Unidos."
Silva lembra que nos últimos anos foi implementada pelo Fed uma política macroeconômica que acabou resultando em uma inflação global, durante a qual "boa parte dos países ao longo de 2022 e 2023 passaram por um desabastecimento de uma série de bens e serviços".
"Então o dólar acabou se tornando um instrumento de canalização do abastecimento da própria economia estadunidense e também da população, pois o Fed, ele acabou se tornando um instrumento de subsidiamento do consumo da própria população estadunidense."
Para Tito Lívio Barcelos, mestre em estudos estratégicos da defesa e segurança e doutorando em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, a defesa de Putin de uma alternativa ao dólar mostra "uma tendência que já estava sendo vislumbrada, não somente pela Rússia, mas por muitos países emergentes e outros países em desenvolvimento, já antes do conflito ucraniano".
"Mas esse processo vai ser acelerado em virtude das sanções aplicadas à Rússia, que acabaram criando um precedente perigoso no sentido de que o capital financeiro norte-americano e europeu também pode ser usado como arma para proteger, obviamente, os seus interesses nacionais."
Ele afirma que a pressão exercida por Washington faz com que países, especialmente do Sul Global, busquem "alternativas para utilizar outras moedas para o comércio internacional".
Ascensão da nova ordem multipolar é 'inevitável'
Putin frisou no discurso que há uma verdadeira corrida entre os países "para reforçar sua própria soberania" e que países que foram líderes "estão tentando manter sua liderança de todas as maneiras possíveis e impossíveis", sobretudo diante do avanço do multilateralismo.
Para Silva, a ascensão de uma nova ordem global é inevitável, uma vez que "o mundo de 2024 não é o mesmo mundo de 1945", no pós-Segunda Guerra Mundial, quando "os EUA concentravam boa parte da capacidade econômica produtiva industrial global".
"O mundo de 2024 é completamente diferente, pois temos potências regionais consolidadas, países como Brasil, África do Sul, Nigéria, Indonésia, que possuem não só um dinamismo que provém das suas capacidades demográficas, de recursos humanos e naturais, mas sobretudo da sua capacidade de construção científica e tecnológica. Se nós pegarmos hoje o quadro de produção de conhecimento de cientistas e de inovações globais, nós observamos que países do Sul Global têm tido um papel muito importante nesse processo", diz o pesquisador.
Entretanto Silva acrescenta que esses recursos são insuficientes se esses países não conseguirem "traduzir a capacidade científica e tecnológica potencial na construção de sua soberania". Segundo ele, isso apenas pode ser feito "por meio da construção de mecanismos estruturais e políticos nacionais e também multilaterais".
"Um exemplo que eu posso oferecer é a proposta feita há alguns anos pelo presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, para a construção de uma espécie de OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] que englobasse os países produtores do lítio. Não só para que esses países tivessem a capacidade de controlar o preço internacional desse importante recurso mineral, mas para que eles também tivessem uma capacidade de, por meio de políticas conjuntas, estabelecer toda uma cadeia produtiva e também científica englobando esses países", explica o pesquisador.
"Eu acredito que mecanismos como esse [proposto por Obrador], que podem ser propostos sobretudo pelos países do Sul Global, serão fundamentais para a construção de uma maior soberania tecnológica, que abranja não só a produção científica em si dentro do âmbito acadêmico, mas também a produção científica e tecnológica no âmbito produtivo, no que diz respeito à administração e ao uso dos recursos naturais, que é um tema fundamental para os países do Sul Global hoje", afirma.
Barcelos, por sua vez, destaca que, quando fala de BRICS e multilateralismo, Putin vislumbra criar um bloco alternativo, para "se colocar como uma das principais lideranças entre os países emergentes e os países em desenvolvimento", no intuito de mostrar que "a posição hegemônica do chamado eixo euro-americano, euro-atlântico, não é monolítica e não pode ser concentrada em um único polo decisor", seja para questões políticas e geopolíticas, seja até para questões ambientais, culturais, econômicas e sociais.
"Ou seja, a agenda global precisa ser democratizada, porque você tem outros atores que, apesar da sua crescente importância política e econômica, ainda não são devidamente representados nas instâncias internacionais, segundo as visões russas, e essas visões russas também são compartilhadas por outros países emergentes", afirma Barcelos.
"Então, para Putin, assim como para outros líderes políticos, como o presidente chinês, Xi Jinping; o presidente indiano, Narendra Modi; muitos líderes do mundo em desenvolvimento; isso também vale para o Brasil, isso também está presente no discurso do presidente Lula; é importante fortalecer esses organismos e essas instâncias", acrescenta.
Nesse contexto, Barcelos afirma que "o BRICS entra como uma dessas possíveis alternativas".
"O BRICS, por exemplo, ele já está caminhando para sua terceira expansão, então você teve a inclusão da África do Sul, em 2010, quando o BRICS se torna BRICS, com a inclusão do 'S', de 'South Africa'; depois você vai ter a segunda expansão, feita no ano passado, com a inclusão de vários países da África, do Oriente Médio, da Ásia […]; e agora se vislumbra realizar uma terceira expansão, pegando países do Sudeste Asiático e da América do Norte, como o México, e, aí, há a medida de fazer com que o BRICS seja cada vez mais visto como um órgão mais participativo, que inclua diversos interlocutores regionais", diz o especialista.
Kiev finge ofensiva diplomática enquanto investe em mobilização
Durante o evento, Putin comentou a redução da idade de mobilização na Ucrânia, uma das exigências dos Estados Unidos a Kiev.
"Vemos essa mobilização forçada na Ucrânia. É claro que a idade da mobilização [para alistamento nas Forças Armadas ucranianas] diminuirá. Sabemos com segurança, através de fontes ucranianas, que os americanos estabeleceram condições para o apoio contínuo, reduzindo a idade de mobilização", disse o presidente russo.
Para Tito Lívio Barcelos, a exigência de Washington expõe que, apesar da retórica difundida pela cúpula sobre a paz na Ucrânia, organizada pela Suíça a pedido de Kiev e apresentada como uma ofensiva diplomática, "o governo ucraniano, com o patrocínio dos Estados Unidos e de seus aliados europeus, mantém a esfera militar como solução para o conflito ucraniano, seja para mostrar maior resistência à campanha militar russa, seja para tentar retomar alguns territórios estratégicos e barganhar melhores vantagens em uma eventual negociação de paz".
"Contudo está muito claro, está cristalino, que desde a ofensiva, a chamada contraofensiva, entre junho e setembro de 2023, as Forças Armadas ucranianas foram privadas das suas capacidades materiais, financeiras e, principalmente, de capital humano para poder repor as suas perdas, repor as suas reservas", diz o especialista.
Ele acrescenta que o governo ucraniano tem demandado a países europeus que repatriem cidadãos ucranianos refugiados que estão fugindo do conflito, que agora precisam voltar para serem forçados a servir nas forças ucranianas.
"Recentemente o Departamento de Estado norte-americano proibiu, impediu que cidadãos ucranianos que tivessem dupla cidadania, ou seja, que tivessem também cidadania norte-americana, saíssem do país [da Ucrânia], praticamente tornando-os disponíveis para o serviço militar obrigatório, para que eles fossem convocados compulsoriamente para o serviço militar obrigatório", diz Barcelos.
"Isso mostra que por mais perdas que o governo ucraniano esteja sofrendo, por mais desfavorável que […] [esteja sendo] o desfecho da guerra — não está trazendo os resultados almejados tanto para a Ucrânia quanto para os países da OTAN —, esses países preferem dobrar a aposta, aumentar, escalar ainda mais o conflito", conclui o especialista.
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