Ciência e sociedade

'Sono não é preguiça': em tempos de pressão por desempenho, epidemia de insônia preocupa médicos

Sono não se recupera, advertem especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil. O processo de dormir é essencial para recuperar o organismo e, a cada ano que passa, aumentam as taxas de insônia no Brasil e no mundo, assim como o uso indevido de medicamentos para tratar essa condição.
Sputnik
O tema do Jabuticaba Sem Caroço da última sexta-feira (26) foi a epidemia de insônia que atinge sete de cada dez brasileiros. O podcast da Sputnik Brasil apresentado por Arthur Neto entrevistou especialistas para saber o que é verdade e o que é mentira sobre essa condição, quais seus perigos e como tratá-la da maneira correta.

O que é dormir bem?

Resumidamente, diz Fernando Stelzer, neurologista e coordenador do Laboratório do Sono da Santa Casa de Porto Alegre, o sono ideal é aquele capaz de restaurar o indivíduo para que acorde bem no dia seguinte.
Para muitas pessoas, no entanto, ter uma boa noite de sono é desafiador. Sete de cada dez brasileiros sofre de insônia ocasional, enquanto pelo menos 20% da população tem insônia crônica, isto é, dificuldades para começar a dormir, ou sono fragmentado, por pelo menos três meses e três vezes por semana.
"Aí é mais grave", afirma Stelzer. Essa falta de sono começa a afetar a saúde da pessoa, de deslizes no dia a dia, como esquecimentos e perda de noção de espaço — podendo causar acidentes de carro —, e até ao longo dos anos aumentar o risco de doença cardiovascular e Alzheimer.
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Assim como as demais necessidades, diz Andreia Bacelar, neurologista e especialista em medicina do sono, a fisiologia tem outras influências no processo de sono.
Há pessoas que são mais matutinas, outras que são vespertinas, mas a maioria são intermediárias. Da mesma forma, adolescentes têm o sono naturalmente atrasado, dormindo e acordando mais tarde, enquanto é comum que à medida que a idade passe, a pessoa durma e acorde mais cedo.

"O melhor dos mundos, o ideal, é que a gente possa viver o nosso ritmo biológico com o nosso ritmo produtivo, acadêmico e profissional", diz a médica.

Contudo, lembra Stelzer, existem aquelas pessoas que trabalham por turno ou plantões, que trocam o dia pela noite, se adaptando a uma nova rotina, ou ficam com o sono desregulado. "O trabalhador de turno vai ter maior chance de [contrair] várias doenças […]. Tem mais risco de doença cardíaca e, por incrível que pareça, mais risco de câncer mesmo."

Quais os perigos da insônia?

Entrevistados pela Sputnik Brasil, ambos os especialistas afirmaram que muitas pessoas tratam o sono como algo descartável, sendo a primeira atividade a perder horas quando é necessário maior dedicação ao trabalho ou a algum entretenimento.
"Hoje nos vendem a ideia de que eu tenho que estar o tempo todo ligado ao que está acontecendo no mundo. Tem que estar o tempo todo consumindo alguma coisa, fazendo alguma coisa. É uma sociedade de produção, de desempenho", articula Stelzer.

"Sono não é preguiça. Sono é uma necessidade. É a mesma coisa que comer, ir ao banheiro, urinar, evacuar. São necessidades fisiológicas."

Essa privação crônica do sono acaba gerando efeitos nocivos ao corpo. "Sono perdido é sono perdido", diz Bacelar. Ainda que se tente compensar o tempo de sono não dormido em outro dia, no dia maldormido "eu deixei de eliminar substâncias, de produzir hormônios, de, por exemplo, ter uma queda da pressão arterial, da frequência cardíaca, como deveria naquela noite".
Com o passar do tempo e do acúmulo de noites maldormidas, as células do corpo vão ficando lesionadas e expostas a problemas genéticos que qualquer um pode ter, como cardiorrespiratórios, imunológicos, síndromes metabólicas, explica a neurologista.

"O sono é um fenômeno inegociável. Não fazemos greve de sono, né? Podemos até ficar privados de sono um dia, dois dias, mas vai chegar um momento que o nosso cérebro vai nos colocar em sono."

Como tratar a insônia?

Se esses problemas podem ocorrer com pessoas que voluntariamente se privam de sono, aquelas que sofrem de insônia crônica devem procurar ajuda médica assim que notarem a condição.
Só que a maior parte das pessoas busca uma solução rápida para o problema, alertam os médicos, através de suplementos que não fazem efeito, como a melatonina, e medicamentos controlados, como o Zolpidem.
"Não é falta de melatonina ou administração de melatonina que vai promover ou fazer com que você durma", afirmou Bacelar. Um hormônio, a melatonina é um neuro-hormônio associado ao início da sonolência. "Infelizmente, ela foi liberada pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] como um suplemento", lamenta a médica.

"Ela deve ser prescrita. O médico vai analisar o sono daquele indivíduo para saber se realmente é melatonina e que dose e que horário ele vai fazer uso."

Já o Zolpidem, que viu sua venda crescer em 200% durante a pandemia, tem efeitos colaterais severos, alerta Stelzer.
"Hoje se sabe que ele causa dependência, especialmente os de dose mais baixa que absorvem super rápido e tem um risco grande de efeitos colaterais de sono, inclusive de a pessoa dirigir dormindo."

"Teve uma situação aqui no hospital [devido ao uso de Zolpidem]: um paciente nosso comprou uma vaca por R$ 6 mil, e mora num apartamento."

Stelzer afirma que um dos tratamentos indicados para a insônia crônica é a psicoterapia, em especial, a terapia cognitiva comportamental, "voltada especificamente para a modificação de hábitos".
Segundo o especialista, esse profissional ajuda o insone a entender os fatores que levam à insônia e a controlar esses sintomas.
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Além disso, destaca o médico, há uma série de mudanças de comportamento que podem auxiliar na melhora do sono, como colocar em prática a chamada higiene do sono, "os bons hábitos do sono".
Isso inclui evitar o consumo de cafeína, álcool e cigarro à noite, ater-se a um horário regular para dormir, ir para cama só quando estiver de fato com sono, não fazer atividades físicas extenuantes à noite, evitar o uso de telas e dormir em um local tranquilo e sem barulhos.

"A higiene do sono é uma das práticas que a gente usa pra tratar a insônia, mas ela sozinha não funciona."

Os especialistas destacam, entretanto, que há muitas informações falsas na Internet sobre o que garante ou não uma boa noite de sono. "Existem algumas publicações em redes sociais que são grandes fake news, dizendo que se você não dormir antes de 00h00 você não terá sono REM", advertiu Bacelar.
O sono REM é a última etapa do sono, explica a neurologista. A primeira é a vigília, isto é, estar acordado. O estágio 1 é a transição da vigília para o sono, quando se boceja, quando se começa a desacelerar o corpo. Já a etapa 2 é o dito sono leve, em que o corpo começa a entrar na etapa 3, o chamado sono profundo.
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Nesta etapa se inicia a parte reparadora do sono, em que ocorrem processos de restauração celular e liberação de hormônios. A próxima etapa é o sono REM (movimento rápido dos olhos, em tradução livre em inglês), momento em que o corpo está totalmente relaxado e no qual ocorre a atividade onírica — os sonhos.

"Passamos por todas as fases desse ciclo, e vivemos de quatro a seis ciclos em uma noite. Isso forma a nossa arquitetura do sono."

Diferentes variáveis podem levar a problemas nesse ciclo, levando ao cansaço no dia seguinte e a longo prazo problemas metabólicos. Para analisar um problema dessa arquitetura, de maior dificuldade diagnóstica, existe a polissonografia, diz Bacelar. O exame mede diferentes taxas, como respiração, oxigenação, se há bruxismo, se o paciente se movimenta muito, se os músculos relaxam, os batimentos cardíacos, as ondas cerebrais etc.
Muitas pessoas demoram a buscar ajuda adequada, diz Bacelar, e "quanto mais tempo eu demoro a buscar ajuda, a fazer um tratamento eficaz, mais consequências para a saúde e mais difícil é tratar."
Segundo a médica, o indivíduo que acha que tem problemas com sono deve fazer uma autoavaliação e ver se os problemas do dia a dia, como irritabilidade, cansaço, perda de memória, imunidade baixa, dificuldade de perder peso, "tem alguma associação com o sono".
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